sábado, 8 de junho de 2013

POEMA DE RETORNO (três dias sobre uma maca no politrauma)



Fui até o inferno para dar uma cusparada
na face de Lúcifer,
chutei o traseiro de Cérbero
e quando ele se virou furioso para mim
babando e rosnando com seu hálito pútrido de muitos séculos
lancei-lhe três ossos em direções opostas
e ele simplesmente não soube o que fazer
entrou em conflito;
quando retornava Caronte quis me cobrar um rim
mas eu usei as coisas que aprendi vendendo sapatos
e negociei com Caronte
Consegui voltar ao mundo dos vivos
trazendo meu rim comigo

Depois dormi e acordei muitas vezes sobre uma maca

Burocracia acaricia democracia
e há centenas e centenas de quilômetros de distancia
a guerra civil segue na Síria

Sorrateiros no sono
surgiam sonhos estranhos
pesadelos dementes de uma febre teimosa

Oh! qual Phoenix inexorável que transita
entre o mundo dos mortos e mundo dos vivos
e que tem como vias de flutuação as dores
e as fraturas
e os cortes
e os traumas
e os assassínios, a violência, o medo, a raiva, o ferimento, a ardência, o torpor
e as agressões e os acidentes
e as picadas das agulhas...

e sangue...todo o sangue necessário ao assunto
efervescência translúcida dos fatos inéditos

O médico me disse que eu havia sofrido um trauma renal nível 4
(existem 4 níveis de traumas renais)

O médico me disse que talvez fosse necessário
extrair o rim
e eu imediatamente me lembrei de Tolstói
e da "Morte de Ivan Ilitch"
e me lembrei também que uma professora havia me dito que médicos
são pessoas cultas que estudam muito
Citei Tolstói ao médico e ele me disse: o que?

Burocracia acaricia democracia

E segue na Síria a guerra civil

Os estádios da copa já estavam todos prontos
e eu usava uma sonda e tinha que carregar uma bolsa
de urina
para onde quer que eu fosse,
mas passava a maior parte do tempo deitado
cochilando entre a saudade das minhas meninas
e os gemidos dos pacientes
quebrados,
queimados,
agredidos,
feridos,
moribundos,
quase esquecidos, quase...

Ah! a periclitância da vida!
ou...como já disse Guimarães Rosa:
esse negócio de viver é muito perigoso

Ah! a perecibilidade da presença!
profligando a soberba e a vaidade
concitando à humildade e a resignação

vaguei por alguns momentos
pelos corredores
como um fantasma em desalento contínuo

Burocracia acaricia democracia

E segue na Síria a guerra civil

O sofrimento é uma forma pragmática de aprendizado
que, ás vezes vem gratuitamente,
assim como, gratuitamente,
me veio uma enfermeira num dia daqueles
me mandou tirar o pinto para fora das calças
injetou um líquido no canal da sonda
e me libertou finalmente

Depois de alguns dias
eu estava voltando para casa
depois de alguns anos
eu ia poder curtir o inverno
no aconchego do lar


                                                            Morpheus







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