terça-feira, 20 de dezembro de 2011

SONETO DE DEZEMBRO

Como flecha varei manhã, tarde e noite e parei;
cravei-me na carne do outro dia
Na velocidade estupefata das horas eu furei
cada momento que inevitável surgia

no tempo ao qual não me dei conta no voo
das figuras e dos fatos em acontecimento
A carne do tempo tem sabor que causa enjoo
e envenena instilando um entorpecimento

Eu só queria ter dito alguma coisa
no momento certo e na hora exata
Como um golpe certeiro que, de uma só vez, mata

Eu só queria ter me dado conta;
em meio ao rebuliço fazer afronta
e saber que tudo se foi como num voo de flecha

                                                                                                Morpheus

sábado, 10 de dezembro de 2011

CONTO PUERIL

            Pela janela do carro onde ele se encostava com ambas as mãos e a ponta do nariz, podia-se ver as casas passando com seus muitos enfeites de luzes piscando e as famílias, algumas delas nas frentes das casas rindo e conversando e tantas ruas e tantas outras casas, cada uma tão diferente mas; de certo modo, um pouco iguais, aquilo tudo era muito divertido de se ver.  E ele podia também sentir, mesmo sem entender muito bem, uma atmosfera diferente naquelas noites quentes de dezembro.  Havia out-doors com grandes letras em néon que; aos olhos do jovem Ruddolf pareciam apenas muito bonitas já que ele ainda não entendia o que elas significavam.  A letra A parecia-lhe uma bocarra sorrindo para frente enquanto que a letra B parecia-lhe um gordinho qualquer e essas observações curiosas o distraiam enquanto eles rodavam com o carro pelas ruas.  O garoto realmente gostava de olhar para as imagens e as letras nos out-doors, nas placas e gostava de observar o movimento nas ruas, os carros, as pessoas, seu olhar era faminto e curioso.  Notou que as pessoas nas ruas ou em qualquer outro lugar pareciam estar num clima diferente, pareciam estar mais contentes, pareciam ter vontade de se reunir e tudo ao redor parecia contagiado por essa alegria incomum. Sem perceber encostou também a boca no vidro o que fez com que este se embaçasse e que fosse logo repreendido por sua mãe que, mesmo estando no banco da frente não descuidara dele. 
            Cada uma das ruas e avenidas pelas quais passaram pareciam ter, para Ruddolf, um encanto próprio.  Cada uma delas era um transbordamento de imagens e de coisas se movendo ao mesmo temo e causando-lhe exultancia, euforia.  Tudo parecia-lhe muito divertido!  Depois entraram numa rodovia e o colorido e a alegria das luzes deu lugar a uma escuridão absorvedora e tenebrosa.  Então ele se deitou no banco e ficou olhando para o teto do carro, ficou observando as sombras se movendo em movimentos bruxuleantes.  Mas após alguns minutos ele já se sentia cansado de fazê-lo e começou a notar novas luzes diferentes iluminando as janelas e invadindo o interior do veículo.  Rapidamente se levantou para olhar através dos vidros.  Estavam agora num estacionamento muito grande que lhe pareceu familiar e estava apinhado de carros naquela noite.  Mesmo assim o pai de Ruddolf não demorou muito até encontrar uma vaga.  Então desceram e seguiram caminhando entre os carros até chegarem à majestosa entrada do shopping que parecia gigantesca aos olhos do jovem Ruddolf.  Ele já havia estado ali outras vezes e reconheceu o lugar tão logo esticou o pescoço pela janela do carro, mas naquela noite tudo parecia estar um pouco diferente.  Fazia calor.  Uma brisa soprava leve e furtiva pela noite.  Aquele vento parecia trazer a cada momento um encantamento estranho, diferente, incomum e Ruddolf pensou a seu modo infantil de pensar que talvez fosse aquilo o tal espírito de natal do qual ouvira falar na televisão e em alguns outros lugares.  As pessoas todas pareciam estar mais felizes e mais sorridentes ou talvez menos preocupadas ou, até mesmo; talvez fossem as duas coisas ao mesmo tempo provavelmente, pensou Ruddolf.
            A entrada do shopping era sempre algo mirífico para o garoto.  Eram tantas coisas para se ver, tantos enfeites e tantas vitrines, todas aquelas lojas com tantas coisas para se comprar e tanta gente, músicas natalinas, muita comida e tudo se movendo ao mesmo tempo e o tempo todo sem parar!
            Logo na entrada ele avistou um papai Noel movendo os braços de modo estranho bem em frente a uma locadora de vídeo games.  Soltou da mão da mãe e disparou correndo até ele.  Tamanha foi sua surpresa ao se deparar então com um papai Noel que, na verdade, era de plástico, movia os braços mecanicamente para cima e para baixo e cantava uma música em inglês da qual Ruddolf nada entendia.
 - Não corra deste jeito Ruddolf! – esbravejou sua mãe tomando-o novamente pela mão.
            Seguiram então pela entrada principal de mãos dadas, o pai de Ruddolf não falava muito e nem parecia se importar muito com qualquer coisa.  Chegaram à uma loja de panos e tapetes.  Ruddolf não compreendia por que sua mãe queria comprar pedaços de panos se, em outras lojas já os vendiam como roupas prontas.  De qualquer modo, sua mãe tinha dessas coisas e aos poucos Ruddolf ia se acostumando com isso, havia momentos em que pensava que talvez um dia, quando crescesse e fosse adulto, talvez fosse capaz de entender melhor essas manias de sua mãe.  Aproveitou um momento de distração de seu pai que havia encontrado um amigo e conversava, para sair andando pela loja.  Sem querer acabou chegando a mesma porta por onde haviam entrado, olhou para fora e avistou de outro lado uma outra loja que parecia ser mesmo muito estranha.  Olhou de volta para o interior da loja e lá estava seu pai rindo com gosto junto de seu amigo, sua mãe com um pedaço de pano verde claro nas mãos parecia indagar algo a uma vendedora.  Olhou novamente para fora, um emaranhado de pernas de adultos numa espécie de dança frenética e; lá do outro lado do corredor a tal loja esquisita.  A curiosidade de ver mais de perto aquela loja e as coisas que ali se vendia somada à audácia infantil tão característica da idade de quatro anos e meio de idade fizeram com que tomasse uma decisão imediata.  Resolveu ir até lá.  Saiu andando sem pensar pelo meio da multidão e foi até a vitrine da outra loja.  Sentiu como se estivesse atravessando um rio, um rio de gente.
            Mas acabou não se impressionando muito com a loja, afinal eram apenas estátuazinhas estranhas de gesso, enfeites em artesanato, artigos para decoração e ele ficou pensando como é que poderia existir uma loja tão sem graça como aquela.  Como é que poderia haver gente idiota o suficiente para comprar coisas tão imprestáveis como aquelas! - pensou Ruddolf.  E foi distraído por esse pensamento que ele seguiu andando e olhando sossegadamente para as vitrines das outras lojas sem se preocupar com nada.  E sem perceber foi perdendo-se maravilhado no emaranhado de cores e formas, sem se dar conta foi sendo tomado por um transe infantil de admiração e continuou caminhando absorto pelos corredores do shopping onde tudo era novidade.  Seu caminhar era incólume e seu rumo totalmente incerto até avistar a alguns metros de distancia o playground, então apertou o passo naquela direção sem pensar em seu pai ou em sua mãe ou em si mesmo.  Sem pensar em nada correu até lá desviando e esgueirando-se por entre as pernas dos adultos.  E quando Ruddolf lá chegou perdeu o sentido do mundo.  Esqueceu-se de tudo e encantou-se com os brinquedos e as máquinas de fliperama e videogames e todas aquelas crianças se divertindo, assim como ele, enquanto o cheiro da pipoca e dos churros se misturavam no ambiente e todos pareciam estar felizes e era como se ele estivesse rompendo a barreira do mundo real onde tudo era sem graça e estivesse, naquele momento, tocando uma nova realidade, uma realidade feérica.  Havia um trenzinho que levava as crianças sobre os trilhos e Ruddolf não entendia por que ele apenas andava sobre aquele pequeno círculo, por que não construíam uma linha maior que atravessasse todo o shopping?  Havia um helicóptero e um disco voador elevados por braços de ferro e Ruddolf não entendia por que eles não voavam de verdade.  Havia uma grande centopéia que também deslizava sobre trilhos e carrinhos de pipoca, churros, algodão doce e muitas, muitas outras guloseimas.  Tinha carros de batida e esses ele entendia por é que batiam uns contra os outros, era divertido.  Um pouco mais ao fundo ficavam os fliperamas e as máquinas de videogames.  Ruddolf correu até lá para ver os jogos, mas os garotos maiores ficavam todos em sua frente, todos muito juntos das máquinas de modo que Ruddolf não conseguia enxergar nada do jogo.  Ele tentou empurrar e se enfiar pelo meio, chegar mais perto para poder ver os jogos, mas um dos garotos maiores o empurrou derrubando-o no chão e disse:
 - Sai fora moleque!  Vai andar na centopéia com a sua mãe!
            Ruddolf caiu sentado no chão e quase chorou enquanto os garotos maiores riam dele.  Chegou a esboçar um início de choro com os olhos se enchendo de lágrimas e o berro vindo pela garganta, mas conteve-se!  Foi forte, trancou a garganta com raiva.  Engoliu em seco, limpou os olhos com as costas das mãos, respirou fundo trancando sua dor e sua revolta no fundo do peito ao mesmo tempo em que um nó se formava em sua garganta.  Levantou-se devagar e limpou as mãos.  Afastou-se receoso.  Saiu andando lentamente de volta para a loja onde seu pai e sua mãe haviam ficado.
            Ia cutucando as unhas, olhando para os dedos com o queixo grudado no peito enquanto uma lágrima teimosa escorria de seu olho esquerdo.  Mas quando chegou até a frente da loja assustou-se e seu choro contido de repente cessou e deu lugar a estupefação ao ver uma mulher trancando as portas da loja onde estavam outrora a mãe e o pai de Ruddolf.  A mulher fechou a porta da loja e simplesmente foi embora conversando com outras duas moças.  O que tinha acontecido com seu pai e com sua mãe?  Para onde tinham ido?  Onde é que estavam?
            Olhou para os lados e viu gente rindo, falando, conversando...mas nada nem de seu pai e nem de sua mãe.  E ninguém naquele lugar parecia vê-lo.  A vontade de chorar estava voltando, sentiu-se incrivelmente sozinho no mundo dos adultos.  Sentiu medo, muito medo.  Um medo que nunca antes havia sentido.  Sentiu medo de ter ficado invisível, pois ninguém por ali o enxergava.  Saiu andando meio sem saber por que, saiu andando a procura dos pais.  E enquanto andava acabou se distraindo de novo e a vontade de chorar passou.  Esqueceu um pouco do medo e se distraiu olhando vitrines.  Notou que as lojas todas já iam fechando uma a uma e começou a pensar no que seria dele se ficasse preso para sempre naquele shopping.  Se ficasse o resto de sua vida sozinho e abandonado entre montras no escuro shopping fechado!  Mas ao mesmo tempo experimentou uma nova sensação de liberdade e imaginou que poderia mesmo passar o resto de sua vida por ali.  Lembrou-se de seu pai dizendo-lhe que não devia temer a escuridão por que a escuridão era tão somente a ausência de luz.  Imaginou-se velho, encanecido, barbudo, maltrapilho, andando à toa pelo shopping, sobrevivendo sentado num daqueles bancos e vendo o povo passar...então pensou; “é; talvez nem seja tão ruim assim!”  É claro, ele era um garoto inteligente, na verdade seria tudo muito fácil.  Principalmente se não houvesse fantasmas e nem assombrações e...era noite, o shopping começava a esvaziar e...logo ia fechar e...e se existissem mesmo fantasmas por lá?
            Esse pensamento o deixou desesperado, seu coração disparou, acelerou os passos, as mãos começaram a suar, suas orelhas estavam pegando fogo, era preciso encontrar a saída o mais rápido possível!  Pensou, puxou pela memória, lembrou do caminho para a saída e pôs-se a correr em direção a ela.  Com todas as suas forças corria movendo-se o mais veloz que podia mas foi ficando cansado.  Logo estava caminhando de novo, embora ainda sentisse medo.  Quando ultrapassou a saída principal do shopping caminhava com passos pesados e estava um pouco ofegante.  Ainda estava um pouco preocupado com sua mãe e seu pai mas estava confiante em reencontrá-los levando-se em conta que já havia se perdido antes e que os reencontrara.
            Finalmente fora do shopping sentiu uma agradável brisa tocar seu rosto.  Sentiu-se um pouco mais calmo apesar de ainda estar sozinho.  Levou a mão à testa enxugando o suor enquanto já olhava para o imenso estacionamento para tentar visualizar seus pais em algum lugar.  Não conseguia se lembrar exatamente onde seu pai havia estacionado o carro então passou a procurar com muita atenção andando pelo estacionamento e perscrutando em todas as direções.  Lembrou-se de que havia deixado no banco traseiro do carro de seu pai um de seus brinquedos, um carrinho verde que costumava levar para quase todos os lugares aonde ia, e passou então a olhar através dos vidros dos veículos mais parecidos com o carro de seu pai até finalmente encontrá-lo.  Ufa, que alívio!  Lá estava seu carrinho verde, lá estava o carro de seu pai, mas onde é que eles estavam?
            Ruddolf aproximou-se do carro devagar, chegou bem perto colocando as mãos no vidro, encostando o nariz e a boca no vidro para tentar observar melhor seu brinquedo no interior do veículo.  Então foi olhando por todo o interior do veículo, observando o assoalho, os bancos, seu carrinho sobre o banco...até seus olhos encontrarem, num momento nunca antes imaginado; outros olhos: negros, totalmente negros.  Redondos, ofensivos, vicerais!  Olhos que não tinham aquelas partes brancas ao redor das pupilas, eram olhos inteiramente pretos!  Eram olhos diferentes, jamais vistos antes.  Na verdade nem mesmo pareciam ser olhos de gente.  Eram olhos de um velho também muito esquisito que estava do outro lado do carro, observando-o através da outra janela com seu grande nariz monstruoso que trazia na ponta uma cabeluda verruga nojenta!  A pele parecia gordurosa e ele tinha uma barba branca manchada de vermelho que, para ele, Ruddolf, pareceu-lhe ser sangue!  A cabeça estava coberta por um capuz marrom que parecia ser uma túnica encardida.  Ruddolf estava imóvel, paralisado pelo medo que sentia ao se deparar com aquela figura bizarra!
            De repente o velho sorri deixando à mostra dentes pontiagudos avermelhados!  E Ruddolf simplesmente sai correndo desesperado de volta para o shopping, morrendo de medo daquele velho estranho.
            Ruddolf correu o mais depressa que pôde, correu de olhos fechados sem parar, sem pensar, sem olhar para trás e quando seu fôlego já estava se esgotando novamente ele acabou trombando com algumas pernas e caiu sentado no chão sem entender muito bem o que acontecia.  Ao abrir os olhos sentiu a felicidade a inundar-lhe novamente o coração.  Sentiu-se incrivelmente feliz, pois as pernas com as quais havia trombado eram as pernas de seu pai e ao lado dele estava sua mãe.  Que alegria!
            Depois de alguns abraços e de uma conversinha voltaram para o carro e; tamanha foi sua surpresa ao constatar que já não havia mais nenhum velho monstruoso por lá.  Então entraram no carro e foram embora.  Ruddolf largou-se exausto no banco de trás.  Suava encostado no banco e ainda observava pela janela.  Afinal, tinha sido uma noite e tanto!  Ficou olhando distraído pelo vidro enquanto o carro ia se distanciando do shopping.  Ele agora se sentia totalmente seguro e mais tranqüilo, mas jamais esqueceria aqueles acontecimentos ímpares.  Descansava apenas enquanto tudo ia ficando para trás, as luzes ao longe, os carros saindo, as calçadas, as pessoas nas calçadas...até que avistou, parado perto de uns latões de lixo, com um saco plástico preto nas mãos, aquele mesmo velho grotesco acenando para ele!
            Porém não disse nada e nem acenou em resposta.  Ficou praticamente imóvel olhando pela janela aquela figura monstruosa e misteriosa que, aos poucos, ia ficando para trás e se distanciando ao longe entre o brilho das luzes, o movimento dos carros e as pessoas que passavam caminhando.      

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

INTOLERANTE

            As brumas e o vento caminham juntos pelo universo.  Diante dos olhos vazios da noite está o véu negro vacilante e silencioso.  O sereno vem soprado pela brisa para cair lentamente sobre os telhados e sobre toda a existência noturna.
            É madrugada.
            A visão se projeta através do véu negro.  Disseminado entre os inúmeros pontinhos de luz da cidade ao longe, estão os ruídos soturnos de uma noite conspícua.  No declive de uma rua (cujo nome ignoramos) há um semáforo medíocre que se fecha num vermelho absolutamente comum para um banal veículo (cujos dados também ignoramos) que se aproxima.  Pode-se ouvir a música proveniente do rádio no interior do veículo a uma boa distância.  O motorista, ao notar o trivial semáforo em vermelho, naturalmente pára, esperando que a luz mude se acendendo num verde esmeraldino.  Não há ninguém atravessando a rua.  Neste momento ele poderia muito bem (e isso teria sido muito melhor para ele) ter ido embora passando pelo sinal vermelho sem que ninguém tivesse consciência de tal infração ou mesmo reprovasse sua atitude com uma abrupta e repentina buzinada.  Na verdade é até mesmo desaconselhável ficar parado num sinal vermelho às tantas da madrugada devido ao risco de assaltos e até mesmo sequestros.  Nos cursinhos de auto escola já se ensinasse algo isto.
            Mas ele pára.
            Logo em seguida se aproxima uma motocicleta Harlley cujo guidão é dominado por um verdugo.  E seu chegar é rútilos prateados e um ronco manso de um monstro semi adormecido.  Tatuagens, botas pretas, colete de couro de cobra, jeans, cavanhaque demoníaco, lenço amarrado na cabeça...  Traz consigo uma espingarda calibre doze num coldre especial junto ao tanque de sua moto!  E como não poderia deixar de ser ele pára logo atrás do carro aguardando que o sinal fique verde novamente.
            No interior do veículo o motorista anônimo balança os braços simulando algumas das coreografias estúpidas da música que ele está ouvindo.  Na verdade ele apenas repete de modo inocente alguns inofensivos gestos débeis.  Dancinhas banais que rapidamente caem no gosto do povo, viram moda e contagiam.  O motorista canta alegremente acompanhando o rádio tal qual uma criança que repete automaticamente tudo o que ouve:

            “dança da bisnaga – é a dança da bisnaga
dança mais – dança mais um pouquinho                                                                                      
come mais –  come mais um pãozinho...”

            De sua moto o algoz ouve e se incomoda.  Ele consegue enxergar através do vidro fumê os braços do indivíduo mocorongo se movendo e imitando as coreografias populares.  O algoz não tem senso de humor, ele jamais se apieda, não tenta compreender, não tolera e nem mesmo tenta ser razoável.  Ele não entende diferenças, não pensa muito na maneira como as coisas acontecem ou como são.
            Ele simplesmente não gosta do que ouve.  Ele apenas não gosta nem um pouco do que vê.  O verdugo olha para um lado e para o outro como se procurasse no pequeno universo daquela rua, uma terceira e latente existência.  Mas nada vê.  Nenhuma alma viva na rua.  Consequentemente nenhuma testemunha.  O algoz é todo hardcore, todo punk-rock, todo metal, todo rock´n roll! Ele saca sua arma e a engatilha.  Mira através do vidro escurecido do carro e aperta o gatilho sem comiseração.
            O tiro estoura o vidro do carro e atinge em cheio a cabeça do motorista!  O carro começa então a descer lentamente a rua.  Parece-me que o pé do motorista estava no freio e como este já não tinha mais vida ou consciência o pé não mais se manteve pressionando o freio.  Desgovernado o carro passa pelo sinal vermelho e ganha velocidade no declive batendo violentamente num muro que existia logo à frente.
            O sinal fica verde.
            Apesar de todo o estardalhaço, de toda a violência do impacto, do tiro, do vidro se desfazendo em milhares de estilhaços e da colisão no muro, a coerência vigente na madrugada da rua sem nome não parecia ter sido afetada, absolutamente!  Então o verdugo, com a excelência de um verdadeiro executor, devolve calmamente sua arma ao coldre e acelera exibindo o ronco selvagem de sua montaria de metal.  E era como uma besta se jactando num uivo metálico!  Mas ainda não convencido totalmente quanto ao êxito de seu disparo, desce com sua moto, aproxima-se lentamente do carro e dá uma olhada.
            Apenas destroços!  Porém o rádio ainda funciona enquanto os restos da cabeça ensangüentada do motorista pende pela janela:

            “ela gostou da bisnaga e agora é a bisnaga
              que ela pensa em mastigar
              vai amassando a massinha da bisnaga
              a massinha da bisnaga...”

            Isso desagrada o algoz.
            Novamente ele saca sua arma e atira destruindo de uma vez o rádio e boa parte do painel do veículo.  Mesmo obstante o algoz não sorri.  Devolve sua arma ao coldre, cospe no veículo e por fim desaparece na escuridão demente.





                                                                                                                     Morpheus

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

NATÁLIA

Vive-se muito ou vive-se pouco
não importa, o que importa é o que se faz

Eu sei, podem até me chamar de louco
por te amar assim demais

e tão de repentemente

mas eu te amo
coisinha pequena e frágil com carinha de joelho

OH!  my second one

Te amo filha
Te amo Natália
e jamais me esquecerei, por mais piegas e repetitivo
que isso possa parecer
Por mais desgastada que possa estar tal frase, de modo que, hoje em dia,
ela parece até que já perdeu o sentido

Mas os sentidos das palavras, ás vezes, não são apenas para se entender
mas para se sentir de verdade

                                                                                                     
                                                                                                    Morpheus

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A ESPERAR

Tal qual um paria do ocidente
entre os mendigos e os bêbados e os mais miseráveis
a contemplar a praça
e sua eternidade fugaz

Tal qual um paria do ocidente
observando as meretrizes e os aposentados e as insaciáveis
pombas em sua caça
incessante e mordaz

Tal qual um paria do ocidente
por uma hora apenas retendo as convicções inabaláveis
de que se é um poeta sem cachaça
na tarde quente de uma cidade audaz

eu

estou cansado de rimas, estou cansado de trabalhar,
estou cansado de olhar minha cara no espelho todos os dias,
estou cansado de saber o preço, de fazer as contas e dizer o quanto,
estou cansado dos sorrisinhos forçados e de peidar e sair disfarçando para qualquer lado,
estou muito, muito cansado dos aranzéis todos e de qualquer movimento amiúde,
estou cansado de tantos espaços vazios nas suas conversas supérfluas,
estou muito cansado mas não me irrito, não me concentro, não quero saber do que irás
me dizer, não quero, não quero mesmo, estou cansado, estou cansado dos rostos com
formatos ovais e estou cansado de esperar por minhas férias, estou cansado mesmo de
estar cansado e também já estou cansado de escrever esta porcaria

mas jamais estarei cansado de esperar por você
Natália

                                                                                    
                                                                                                         Morpheus

sábado, 1 de outubro de 2011

PARA ROSELY

Sob a tutela do acaso
me olho no espelho
Reconheço indeléveis
rastros seus em mim
Te abraço
espraiando o acalento do calor
que vem assim
gratuito no orgasmo de nosso encontro
Te toco
na infinitude de um segundo apenas nosso
Singro em silêncio suas águas voluptuosas
sem encontrar uma rima
para os teus olhos verdes
mas encontro o amor
de mulher nordestina

domingo, 21 de agosto de 2011

O NOCAUTEADOR

  Nilson havia sido pugilista.  Em seu currículo constam apenas treze lutas profissionais; oito vitórias, tendo sido cinco por nocaute e cinco derrotas sendo que em duas delas Nilson houvera beijado o chão.  Jamais havia empatado uma luta.  De qualquer modo; ainda hoje Nilson se orgulhava muito disto.  Arrependia-se de ter interrompido sua carreira de modo tão estúpido.  Disto arrependia-se até o seu último fio de cabelo.  Envolvera-se num assalto onde alguns policiais haviam sido baleados e outros mortos e isto; além de custar-lhe a carreira como boxeador também o havia obrigado a passar mais de vinte anos na cadeia sem contar um ferimento à bala na coxa que doía um pouco toda vez que fazia esforço.
  Mas isso tudo havia começado na década de setenta.  Depois da cadeia Nilson viajou por muitos estados.  Trabalhou em muitos empregos miseráveis e veio estabelecer-se em Curitiba onde trabalha carregando caminhões com cimento.  Hoje o encontramos parado em uma esquina qualquer.  Tinha vindo ao centro gastar seu suado dinheiro com algumas roupas e sentia-se entediado; por isso tinha tomado algumas cachaças.  Havia momentos em que Nilson pensava que sua vida podia ter sido diferente se não tivesse se envolvido em coisas tão erradas e isso o fazia lamentar-se muito, mas em silêncio.  Era o tipo do cara que não falava muito e ruminava suas angústias sozinho.  Mas mesmo hoje, aos cinquenta e seis anos, Nilson se perguntava se ainda seria capaz de derrubar algum adversário no ringue.  Nilson tinha certeza de que ainda tinha bons reflexos e o trabalho como carregador de cimentos o matinha em forma.  Nilson pesava mais de cem quilos, era um peso pesado.
  No mesmo momento em que encontramos Nilson parado numa esquina do centro de Curitiba dois guardas municipais se aproximam caminhando.  Nilson os vê de esguelha e crispa as mãos com força.  De repente Nilson tem uma ideia.  Deixa sua sacola no chão e se vira para avaliar melhor os guardas que se aproximam.  Dois magricelas; ele pensa, deviam pesar no máximo entre sessenta e cinco ou setenta quilos cada um deles.  Dois otários; ele pensa.  Nilson nunca gostou de policiais e depois de levar algumas surras e de ser seviciado por algum tempo no cárcere esta implicância apenas havia se agravado.  Calculou que estavam mais ou menos entre meio médios ou meio médio ligeiros se fossem pugilistas e imaginou que talvez não fosse muito dificíl derrubá-los desde que fosse rápido e preciso, é claro.  Nilson carregava facilmente dois sacos de cimentos na cabeça e aqueles dois policias que vinham caminhando eram pouco mais de dois sacos de merda, ele pensava.  Virou novamente olhando para a rua e se manteve estático como se estivesse muito distraído.  Poder-se-ia mesmo dizer que tratava-se apenas de um merencório descansando um pouco ali naquela tarde banal.
  Mas quando eles passavam bem diante dele Nilson golpeou o mais próximo com um direto de direita bem no meio do nariz e colocou-o para dormir imediatamente no chão com o nariz ensanguentado.  O segundo se afastou um pouco e ficou boquiaberto com o que Nilson havia feito.  Nilson deu dois passos na direção deste que tentava ligar o rádio para pedir reforços, mas não houve tempo.  Nilson ameaçou outro direto de direita e quando o guarda levantou o braço para se proteger foi atingido violentamente no queixo por um gancho de esquerda que arrancou alguns dentes e o fez dormir no chão ao lado de seu colega de trabalho.
  Nilson observou algum tempo os dois idiotas estendidos no chão e pensou consigo mesmo que ainda conservava os mesmo reflexos de 1976.  Pegou sua sacola e foi embora caminhando lentamente.

sábado, 30 de julho de 2011

VISITA

Esperei até que o inverno finalmente chegasse
e os dias se tornassem mais curtos

Esperei até o dia em que tudo estivesse
acontecendo da forma mais natural possível
e que jamais alguém pudesse imaginar ao me ver
que eu já não os tinha mais ao meu lado

Escolhi um final de tarde de sábado quando o vento era frio e cortante
e o sol parecia morno por entre as folhagens das árvores

Não pensei em nada para dizer antes da hora
e quando cheguei tudo estava exatamente como antes

Eles estavam à minha espera
e enquanto eu descia a ladeira do cemitério
pensava na brevidade da vida
e na insignificancia de nossa passagem,
pensava em minha filha,
nas contas que iam vencer,
e pensava em como eram bonitas algumas lápides

Aos poucos me emocionava sem querer,
mas quando cheguei diante dos túmulos
tudo era frieza

eu não sabia o que dizer

eu...
eu deveria dizer alguma coisa?

para quem?

LÁPIDE DE CONCRETO

datas de nascimento e morte;
vento frio e cortante

eu ali parado

Permaneci fitando a frieza cinzenta dos túmulos

Estava cansado

Tentava me lembrar de minha mãe, de meu pai;
queria reter a lembrança deles em minha mente

Queria me lembrar deles
eu queria, queria muito

Mas havia um túmulo à minha frente
um túmulo

Chorei

Senti saudades, muitas saudades

Aos poucos me senti mais à vontade e comecei a falar
com mamãe e papai...

já faz algum tempo que não venho,
eu ando correndo por aí
eu ando trabalhando muito, mas vocês; bem, vocês ficariam orgulhosos
de mim
(e chorei)
hoje eu sou chefe de família,
em breve terei mais uma filha,
me atrevo a escrever poesia
eu...
posso ser meio maluco mas;
sinto falta de vocês

E lhes falei
que somente eu fiquei
naquela casa
Somente eu tenho tudo ainda comigo
a saudade e o silêncio
quando lá estou sem o meu velho e a minha mãe
Somente eu, poeta orgulhoso
ouvindo Pink Floyd na velha casa dos velhos que já se foram
Somente eu...
não quero esquecer o metalúrgico e a telefonista
somente eu sou suficientemente egoísta para pensar
que somente eu tenho saudade de vós
Mas somente eu
fiquei sozinho naquela casa...
lembrando do tempo em que mamãe chegava trazendo biscoitos de polvilho
e papai meio chapado demorava a estacionar o carro
e eu era menino

Hoje sou homem
e já deixei as coisas de menino
Por isso trabalho demais e assim como papai
ás vezes bebo demais
e assim como mamãe, me estresso ás vezes
e assim de meses em meses
o tempo vai passando
e a saudade vai ficando

Saudade é inefável
portanto, depois de conversar um pouco
pedi licença
me despedi e fui embora

Deixei mamãe e papai prometendo voltar outro dia
mas quando cheguei em casa aquela saudade ainda existia

                                                                                     Morpheus

domingo, 10 de julho de 2011

TELEFONEMA

    Sim, era melancolia.  Eu sou um cara melancólico.  E por um instante isto me fez lembrar Sartre e sua Náusea, me fez sentir vontade de beber, me fez parar e ficar fitando um ponto qualquer durante um bom tempo enquanto todo aquele sentimento se diluia lentamente.  Ah...eu deveria ligar?  Deveria?  Depois de um dia agitado eu tinha de novo meu momento de solidão.  Tinha passado o dia todo submerso por pensamentos e lembranças e o tempo todo me perguntando se havia um motivo forte para, quem sabe, um rompimento.  Passei o dia todo com essa angústia inescrupulosa, fiquei remoendo todo meu orgulho e; na verdade nem sei.  Não sei de nada.  Não sei se ligo.  Será que devo ligar para ela?  Ou será melhor permanecer em silêncio e ocultar meu rosto no escuro?  Fingir um sorriso sarcástico, inventar uma gargalhada para um piada sem graça...  Ora, não devo mesmo é ser tolo, afinal foi só uma briguinha sem motivo, na verdade apenas um desentendimento banal e eu sei que cedo ou tarde ela vai ligar.  No fim das contas ela sempre acaba ligando e depois me aparece e me fita com os lábios trêmulos e diz, "precisamos conversar", então eu a abraço e tudo se resolve como num passe de mágica.
    Mas e se dessa vez ela não ligar?
    Quando cheguei em casa tudo estava exatamente no mesmo lugar, a mesma bagunça de sempre, algumas meias pelo chão, a cama desarrumada, algumas roupas sujas esquecidas pelos cantos da casa, um copo com um restinho de café que eu esqueci de manhã sobre a TV.  Somente ela não está aqui.  E olhando para tudo isto aqui eu quase sou capaz de enxergá-la, quase consigo vê-la arrumando as coisas e me censurando, me olhando com aqueles olhos verdes e ralhando comigo.  Ela sempre cuidou tão bem de mim!
    Pelas ruas por onde passei tudo me parecia indiferente.  Esses meus pensamentos idiotas!  Nos processos parecia ver sempre as mesmas coisas.  Aos poucos essa melancolia ia se cristalizando e se apoderando da minha alma enquanto o olhar se perdia nas pilhas de papel, na gaveta da escrivaninha, no teclado do computador, na parede tão morta do escritório calado, nas coisas mais amiúdes do cotidiano tão ordinário mas que hoje não era tão ordinário nem tampouco amiúde, mas melancólico, tão melancólico!  Somente mais um dia de trabalho, mais um dia comum de semana.  Somente mais um dia voltando do trabalho como todos os outros malditos dias em que se volta do trabalho sem se interessar por coisa alguma, mas hoje; hoje essa sombra nefasta havia manchado tudo.  Antes de chegar em casa ainda tinha dado umas voltas por aí, umas voltas a esmo.  Entrando por qualquer rua e saindo por qualquer outra sem motivo nem direção.  Como as coisas seriam mais simples se a vida também nos oferecesse praticidade assim, se pudessemos encontrar saídas assim facilmente.  Tomar qualquer caminho, seguir qualquer direção.  Não que tivessemos tido uma briga feia cheia de ofensas e palavrões, até por que jamais brigávamos assim.  Quando começávamos a discutir e a elevar o tom de voz ela logo dizia, tá bom, tá bom, já chega.  E eu ficava olhando para aqueles olhos verdes tão lindos sem nada dizer.
    Sentei no sofá, peguei o controle remoto, pus os pés sobre a mesinha de centro sem me importar em tirar os sapatos e liguei a televisão, olhei para o teto...  Assisti um pouco de televisão mas era como se não estivesse vendo nada.  Levantei, fui até a cozinha, enchi um copo com café morno (ainda bem que ainda tinha café), acendi um cigarro, peguei um cinzeiro sobre a pia, voltei para a sala e...desliguei a televisão.  Não estava mais suportando aquilo.  Fiquei em silêncio fumando.  Bebi um gole de café lentamente, dei uma boa tragada, olhei para a televisão e pensei que ela ficava bem melhor assim, desligada.
    Meu Deus, ela devia entender que as coisas não eram bem assim.  Ora, ela tinha a vida dela, a casa dela, as coisas dela, o trabalho, a nossa vida em comum, o nosso relacionamento estava ótimo da maneira como estava, sem casamento, sem filhos, sem amolação, sem frivolidades.  Passavamos muito tempo juntos.  Às vezes na casa dela, ás vezes em casa, mas sempre que surgia esse assunto começava a contenda.  Era só alguém pronunciar a palavra casamento e pronto, ás vezes era só alguém começar o assunto e logo vinham cobranças.  Ela não compreendia, é isso que destrói um casal, a rotina o tempo todo, a convivência excessiva, os filhos vindo bater na porta para interromper o momento de começar a fazer amor.  Até à mesa, durante as refeições, na casa dos pais dela ou na casa dos meus ou mesmo entre amigos; quando surgia esse assunto eu logo enrubescia e ficava meio sem jeito.  Então ela aproveitava para disparar sua metralhadora de palavras sobre mim.  Era quase sempre assim e agora já fazia quase duas semanas e nada.  Nenhum telefonema, nenhum recado, nada.  Ela diva estar mesmo ressentida.  É dificíl pensar que uma mulher como ela pode ficar magoada com qualquer bobagenzinha.  Que ficasse zangada apenas por que queria casar logo e batesse o pé.  Ah, mas é isso mesmo o que elas sempre querem.  Até mesmo ela, uma advogada de sucesso que tinha uma vida estável, uma mulher madura de trinta e poucos anos de idade e absolutamente independente que parecia se comportar como uma criança quando era contrariada e o fazia apenas para conseguir o que queria, casar-se!  Afinal não se pode entender as mulheres.  Mas se as coisas têm de ser assim que sejam.  Se ela quer assim, vai ser assim.  Não vou ligar, nem deixar recado nem nada.  E também, afinal de contas, havia outras garotas, ora!  E ela nem precisava saber disso...
    Será que também havia um outro?
    Ela nunca ficou tanto tempo longe, nunca deixou de ligar pelo menos uma vez durante o dia, nunca em todos esses anos ficou tão distante, nunca!  Ela é do tipo romântica, do tipo moralista, não se desprenderia tão facilmente e nem começaria outra coisa assim tão rapidamente.  Eu me lembro como foi difícil no começo...  Mas no começo eram outros tempos, éramos diferentes, mais jovens, mais inexperientes...
    Subitamente me levantei, afrouxei a gravata e fui até a cozinha.  Deixei o copo na pia e joguei as cinzas no lixo, voltei para a sala.  Liguei a TV novamente.  Fiquei assistindo um pouco sem me interessar por nada.  Meu pensamento era verde,  os olhos dela eram verdes, a vida era saudade daquele verde, daquela voz, do cheiro dela.  Aquele verde dos olhos...era um verde bem clarinho, mais ou menos da cor de uma casca de uva que acabara de brotar e com a qual poderia se fazer o mais saboroso dos vinhos brancos; ah...que inebriante seria...ah; à sonhos esmeraldinos me levaria...sem motivo, sem razão e com todo o amor!  Com gestos suaves, tenros e delicados beijos que ela me entregava e me abraçava; tocava meu rosto em silêncio e eu a olhava nos olhos, eu observava os contornos em verde piscina ao redor da íris e notava pequeninos tracinhos alaranjados quase invisíveis e que iam se tornando acastanhados, negros, misturados ao verde e depois tudo era um único abraço tépido, um calor só nosso, apenas meu e dela.
    Desliguei a TV.  Fui ao quarto.  Olhava para as paredes com as mãos nos cabelos, não sabia o que fazer, estava angustiado.  Ah; ela esqueceu o perfume dela aqui!  Como pude não tê-lo visto antes?  Tomei o pequeno frasco nas mãos e inspirei sentindo o aroma suave e levemente adocicado.  Aquele cheirinho era ela mesma em pessoa e por um momento, numa reminiscência fugaz vi seu corpo alvo e nu sobre a cama.  Estive tão embebido em meus pensamentos egoístas!  Estive tão absorvido em minha estupidez que nem notei que ela tinha esquecido o perfume dela aqui.  E como isso me maltrata!  Como sou tolo, como me castiga essa saudade!  Essa vontade daqueles lábios carnudos, esse desejo daqueles seios fartos e alvos, brancos como leite!  Ah...que saudade daqueles peitos grandes!  Gostosos!  Eu queria abraçá-la agora, como eu queria abraçá-la agora!  Eu vou ligar para ela e vai ser agora.  Foda-se tudo, eu vou ligar para ela!  Dane-se o meu orgulho, foda-se o mundo!  Eu a amo.  Pode ser piegas dizer isso, mas eu a amo!  Saio do quarto num ímpeto violento deixando o perfume dela sobre a cômoda e volto para a sala.  Vou direto ao telefone, tiro o fone do gancho, mas quando vou discar os números me contenho.  Paro.  Hesito.  Encontro em meus biltres pensamentos as mais obsoletas desculpas, os alvitres mais canalhas camuflando meu orgulho de mim mesmo e então simplesmente permaneço estático.  Talvez ela nem mesmo esteja em casa...  ela me ligava todo santo dia e ás vezes até várias vezes no mesmo dia mas; agora não liga mais.  Simplesmente não liga mais.  Não aparece.  Não vem me censurar pela bagunça da casa.  Não deixa recado com ninguém, não deixa recado no MSN.  Talvez nem se importe mais.
    Peguei meu maço de cigarro sobre a mesinha de centro e acendi outro cigarro, me larguei no sofá e coloquei o cinzeiro sobre o braço do sofá.  Fiquei um tempinho observando o fone que jazia abandonado fora do gancho ao lado do aparelho com o seu infinito tuuuuuuuuuuuu...por fim o tomei nas mãos e o coloquei em seu devido lugar.
    Permaneci ali, parado olhando o telefone.  Estava de volta a minha existência singular e unilateral.  Já não devaneava.  De repente me sentia seco, vazio, solitário.  Estava atolado em minha prepotência.  Estava só.  À mercê da inanidade de uma sala vazia e silenciosa.  O cheiro dela?  O cheiro dela insistiu em permanecer em meu olfato mesmo enquanto eu fumava.  O aroma permaneceu como um flagelo de rejeição e indiferença pelo qual eu me sentia subjugado.
    Não suportei, num salto estava de pé de novo.  Dei um passo na direção do telefone.  Parei.  Ora, acho que também não custava nada dar um alô.  Está muito claro nesta situação que é ela quem está me dando um gelo e talvez neste momento ela esteja lá parada, esperando ao lado do telefone extamente como eu também estou.  O último fim de semana eu já passei sozinho e tenho que admitir que não foi nem um pouco...
    TRI-LI-LI-LI-LI-LI-LI-LI - o telefone toca seu toque suave e estranho.
    É ela, só pode ser ela.
    TRI-LI-LI-LI-LI-LI-LI-LI.
    Só pode ser ela, eu não estou esperando nenhuma outra ligação.  Eu sabia, eu sabia que ela ia ligar, eu...
    TRI-LI-LI-LI-LI-LI-LI-LI.
    É mas; deixa tocar mais uma vez, eu não quero dar a impressão de que estava esperando por isso.
    TRI-LI-LI-LI-LI-LI-LI-LI.
    - Alô.
    - Boa noite, o senhor tem cataflan?
    - Ca-que- como?
    - C-A-T-A-F-L-A-N; cataflan.  O senhor tem cataflan aí?
    - Não.
    - Dipirona o senhor tem?
    - Não.  Com quem você quer falar?
    - Não é da farmácia Santa Isabel?
    - Não.
    - Ah, então me desculpe, foi um engano. Tu-tu-tu-tu-tu...   
    Fiquei paralisado por alguns segundos ainda com o fone na orelha ouvindo aquele barulhinho sórdido.  Por fim desliguei o telefone e caí de volta no sofá.  Rendi-me de uma vez à inércia da minha sala.  Fiquei contemplando o implacável e austero silêncio apoderando-se de forma solene de cada milímetro do ambiente.
    Isso era tudo que me restava, o silêncio preenchendo os espaços.
    Subitamente me levando decidido.  Vou até o telefone e disco os números tão familiares.  Do outro lado ela logo atende:
    - Ah, é você meu amor, estava esperando você me ligar.

                                                                                                      Morpheus

     


   

sexta-feira, 1 de julho de 2011

LAVIGNIA

A cidade pulsa

Poucas horas atrás deixei minha mulher no hospital
para dar a luz à minha filha

Minha mente é um ermo
e no entanto;
a velocidade das coisas me procura,
me afeta,
me invade a mente
qual abrupto golpe sem razão no vazio

Pelos meandros da cidade
vou alcançando outra fase da vida
Foi-se a infância e tudo que é lúdico
Foi-se a adolescência e a inconstancia

Minha filha está nascendo

A angústia da espera não há,
tenho tantas outras coisas em que pensar...
A maturidade me permeia,
me quer,
me alcança e me abraça

Eis tua vida,
toma-a nas mãos,
beija com carinho,
acalenta com cuidado
e sê sábio

                                                         Morpheus

quinta-feira, 16 de junho de 2011

JOÃO E O PÉ DE MACONHA

        Num dia de domingo João acordou bem cedo com a barriga roncando e foi procurar algo para comer no armário da cozinha.  Encontrou cinco bolachas de leite.  Tomou um copo d'água e foi até o quintal onde seu cachorro Caneca o recepcionou com a típica fidelidade canina.  Agachou-se perto de seu animalzinho que o lambia e festejava freneticamente e o presenteou com três das bolachas que encontrara.  Mastigou as outras duas.  Como não tinha que ir a escola naquele dia João comtemplava o quintal com os cabelos espatifados e mastigava suas bolachas sem vontade de fazer mais nada na vida.  O que fazer num dia de domingo como aquele?  Talvez fosse jogar bola na rua com outros moleques ou talvez fosse dar uma volta em sua bicicleta por aí.  Mas então João se lembrou do que seu tio e tutor Dário havia lhe ordenado no dia anterior; que ele deveria vender aquela porcaria de bicicleta e comprar alguma coisa mais útil como comida, por exemplo.  E agora que João já tinha acabado de mastigar aquelas bolachinhas e sentia seu estômago ainda roncando, percebia que o que o seu tio e tutor Dário havia lhe dito realmente fazia sentido.  João se aproximou de sua bicicleta, que não era muito nova e começou a observá-la mais de perto pensando que se sentiria muito triste por ter de se desfazer dela.
     - O que você tá esperando muleque, vai logo na fera vende essa porcaria.  E vê se traz um pouco de arroz por que já tá acabando o que tem aqui - era Dário que surgia de repente com sua voz tonitruante quase matanto João de susto.  E como não havia alternativa João foi calçar os chinelos para ir até a feira.  Chamou seu amiguinho Caneca e se mandou.  Quando se aproximava da feira o cheiro de pastéis fritos fez com que seu estômago roncasse ainda mais e aquilo foi uma tortura para o menino.  João pensou o quanto seria bom se pudesse comer um pastel de queijo.  Mas como não tinha consigo um centavo sequer João foi direto a bicicletaria onde foi recepcionado por um velho barbudo que ralhou com ele antes mesmo que ele pudesse dizer algumas coisa:
     - Não tô comprando nada hoje muleque, chispa daqui com essa bicicleta.
        João ficou muito desapontado.  Ficou triste.  Saiu andando macambúzio e pensando no que ia ter que dizer ao seu tio e tutor Dário quando chegasse com as mãos vazias e a barriga ainda roncando.  Caneca apenas seguia os passos vacilantes do dono até que este de repente acabou sendo surpreendido por uma figura estranha que habitava os arredores e observara a cena de João sendo rechaçado pelo dono da bicicletaria:
    - Aí muleque, chega aí - era um hippie com sotaque carioca - qual é muleque?  Tu num consiguiu vende tua bicicleta praquele otário?  João virou para fitar o hippie andrajoso e sem entender muito bem aquela conversa respondeu:
    - Qual o que?
    - Qual é muleque, toca aí - e eles se cumprimentaram - tu tá querendo vende a magrela aí, é?  João fitou melhor aquele ser exótico que parecia cheirar mal.  Arregalou os olhos e disse meio sem vontade - é...  O hippie se aproximou, pôs a mão sobre o ombro direito de João que notou que ele tinha alguns anéis e recomeçou a falar com aquele sotaque carioca:
    - Aí, presta atenção, vou te dizer uma coisa com sinceridade, eu tava pensando exatamente em comprar uma magrela irmão; sinceridade - João apenas o ouvia sem entender muito bem o que ele queria - e como vi que tu tá querendo vender a tua, pensei em te propor um negócio de camarada, que é que tu acha? - João tornou a fitá-lo sem dizer palavra e o hippie continuou - eu tenho aqui um barato bem louco e tava pensando em trocar contigo, tá ligado, tua bike por umas sementes mágicas, que é que tu acha?
    - Sementes mágicas?
    - É, saca só, tu pega estas sementes - e tirou um pequeno embrulho do bolso onde havia porção de sementes pequeninas pretas arredondadas - tu planta e tu rega parcero, dali uns dias tu vai te uma mina de ouro em casa irmão.
    - Mina de ouro?
    - Pode crê, vai por mim, tu num vai se arrepende não.
    - Ah... - João coçava a cabeça e hesitava um pouco antes de dizer - então tá.
      E fizeram a troca.  O sujeito montou na bicicleta no mesmo momento e desapareceu enquanto João seguiu de volta para casa para falar com seu tio e tutor.  Porém quando lá chegou recebeu a maior bronca de toda sua vida.  Dário ficou furioso!  Como pudera João ter sido tão ingênuo?  Sementes mágicas!  E isso lá por acaso existia?  Seu tio e tutor ficou tão irritado que arremessou as sementes no quintal.  João nada mais disse, apenas baixou a cabeça e entrou em casa descoroçoado.
      Passaram-se seis meses ou mais e ninguém mais havia tocado no assunto das tais sementes.  A vida de João seguia normalmente sofrida como sempre fora.  Dário nem se importava de ir ao quintal vez ou outra, quintal, aliás; que parecia mais uma pequena floresta ou um pequeno bosque por assim dizer.  Caneca era quem o frequentava constantemente instigado por seus instintos caninos.  Mas o que ninguém sabia e muito menos imaginava era que a vizinho do lado, dona Lucrécia, senhorita circunspeta e, porque não dizer exótica; tinha também (além do hábito de mexericar) o hábito de investigar o quintal das casas alheias.  E foi assim que, um dia, quase por acaso (teria dito ela ao telefone quando comunicou a polícia) ela notou a presença de uma planta diferente naquela quintal cheio de matos.  A princípio nem desconfiou, mas depois, pensando melhor resolveu perguntar para seu filho e pediu que ele pesquisasse na internet a origem daquela espécie estranha de arbusto que de repente ali surgira.  Após tal confirmação dona Lucrécia se viu mesmo obrigada a delatá-los, aquilo não podia acontecer ao lado de sua casa.
      E foi assim que Dário foi parar na cadeia e João num orfanato.  Caneca?  Caneca vive por aí, é um cão e cães são sobreviventes.  Deus sabe lá por onde anda.

terça-feira, 31 de maio de 2011

PRECISA-SE

Precisa-se de out-doors,
precisa-se de publicidade arrivista,
precisa-se de consumidores que trabalham o dia todo
e querem gastar seu tempo livre comprando,
consumindo,
gastando,
possuindo,
desejando
a vida em longas prestações a juros baixos
É preciso aliciar, seduzir, convencer
É preciso vender,
vender é preciso
viver nem tanto
ou não tanto quanto
possa parecer que é preciso
aos olhos do indeciso
que à frente da vitrine
pensa em possuir algo que combine,
que complete, que inove,
que reduza toda sua personalidade a um padrão de vestimenta
e que resuma o seu corpo a parecer-se com o que é novo
Precisa-se sempre precisa-se,
nunca se tem o suficiente,
nunca é bastante o que já é muito
e nunca é muito o que já é demais,
é preciso de mais, mais, mais
Uma casa não basta, é preciso uma mansão,
um edifício, uma empresa que ocupe todo um quarteirão
Uma cidade inteira e uma internacionalização,
é preciso exportar além das divisas,
é preciso alcançar um novo patamar,
é preciso novas metas, novos desafios
É preciso vencer,
é preciso ser o número um
e não apenas mais um,
é preciso se livrar do produto da estação passada,
é preciso comprar um novo, estar na moda,
é preciso inovar, modernizar, padronizar, alienar
É preciso esquecer o tênis com três meses de uso,
é preciso um novo celular mais caro e mais confuso,
é preciso trocar o carro do ano que passou,
é preciso ignorar o filme que a TV  já reprisou
Hamburguer, fritas e refrigerante,
um computador novo ao lado da nova estante
É preciso se empanturrar na ceia de natal,
é preciso se embriagar no réveillon,
é preciso pular os quatro dias de carnaval
e comer ovos de chocolate na páscoa
É preciso ser como todos são,
ficar feliz quando todos também estão,
ter uma carreira de futuro
e não ficar em cima do muro
É preciso ser sem graça,
fazer churrasco todo fim de semana
e para tudo que puder se dar um jeitinho,
é preciso conhecer gente fluente e importante,
é preciso ter cunha,
é preciso furar a fila
e achar que é maravilhoso ter muito dinheiro
e dizer-se fiel seguidor da moral e dos bons costumes
mas confessar que já traiu a mulher,
que já trapaceou no jogo,
que já mentiu para ter algum benefício
É preciso dizer que não gosta de política
e que os políticos são todos uns salafrários
e que o que importa mesmo é ter dinheiro no bolso
Mas acima de tudo é importante e é preciso
ter muito juízo
e coragem de dizer que isso tudo não é preciso
É preciso?

domingo, 17 de abril de 2011

ENLATADO BRASILEIRO ROCK´N ROLL

Auto americano brasileiríssimo
sou eu,
enlatado brasileiro rock'n roll
eu sou

Eu trabalho sem explosões latinas,
sou poeta e finjo ter um emprego

Mas o que é preciso saber
é que todos tem o direito de dizer


NÃO

a rede de emissoras globo
e a propaganda norte americana
Ninguém deve ser feito de bobo
nem comprado por quem alicia e engana

domingo, 3 de abril de 2011

DESEJO DE MATAR

          Ora, serei franco desde o início.  Não sei por que diabos aqueles malditos pensamentos começaram a me tirar a paz.  É claro que eu já havia desejado matar alguém antes e nunca tinha dado muita importancia a isto.  Acho que o ato de matar foi, na realidade, a finalidade primeira de minha humilde existência muito embora eu houvesse reprimido esse desejo por muito tempo.  Creio que hoje posso afirmar isso plenamente.  Sim.  Sempre desejei matar.  Mas antes de eu lhes contar como tirei a vida de um homem, permitam-me uma breve introdução a respeito de minha discreta pessoa.
          Pois bem, eu costumava tomar meu café todos os dias no mesmo barzinho ordinário de sempre.  Um botequim que ficava a poucos metros do edifício onde eu trabalhava como porteiro há quase doze anos.  E foi neste boteco que decidi um dia concretizar meu intento, mas voltando ao que eu dizia; meu emprego me mantinha e isto era o suficiente.  Trabalhar como porteiro não enche o peito de ninguém de orgulho, mas também não é motivo de vergonha.  Conhecia muita gente por ali, mas nunca fui muito de conversa.  Eu gostava mesmo era de fumar.  Fumava muito e ainda fumo.  Quando podia evitava as pessoas e suas conversas monótonas.  Então eu podia fumar meu cigarro em paz ou simplesmente ficar ali quieto na portaria.  Eu já tinha comido muito do pão que o diabo amassou antes de conseguir aquele emprego, por isso, quando consegui aquele emprego pensei; tenho que sossegar o facho e ficar aqui por um bom tempo.  Toda semana eu jogava na loteria.  Nunca ganhei um centavo.  No bicho eu ganhava um dinheirinho ás vezes.  Mas sempre perdia dinheiro naqueles caça-níqueis idiotas quando resolvia encher a cara nas sextas feiras.  Quando sentia necessidade pagava uma prostituta e dava uma gozada.  Não sentia necessidade de afeto.  Nunca senti.  Sentia necessidade de sexo ás vezes e o trabalho das meretrizes me bastava.  Mas sempre que tinha de fazê-lo eu procurava um puta diferente para não criar vínculo algum.  A maioria das vezes eu trepava com velhas.  Morava sozinho e nunca levava ninguém para casa.  Também nunca dizia a ninguém onde é que eu morava.  Pagava o aluguel rigorosamente em dia.  Meu apartamento quase não tinha mobília, mas eu tinha algum dinheiro no banco em virtude de minha parca natureza.  Minha infância também não tinha tido nenhum acontecimento especial.  Eu gostava apenas de brigar e era dificíl eu perder uma briga.  Só não era páreo para o meu velho, por isso fugi de casa aos treze prometendo que voltava para dar-lhe uma sova.  Vim morar com uma tia aqui na capital.  Aos dezesseis já me sustentava e aos dezessete fui morar sozinho.  Sempre fui esperto o bastante para não me meter em encrencas, principalmente com a polícia.  Mas sempre detestei policiais, criaturas insuportáveis!  Na verdade eu nunca gostei de gente!  Pessoas são sempre tão desagradáveis!  Tão sem graça o tempo todo!  Sempre fingindo ser simpáticas, sempre dissimulando amabilidade.  A solidão sempre me dava mais prazer, mais força, mais desejo de ser eu mesmo.  E ser eu mesmo era outra coisa insuportável.  Eu detestava meu nome, Cleomir.  Nome mais idiota!  Como meus pais haviam sido tão idiotas a ponto de encontrar um nome tão detestável quanto este para me batizar!?
          Foi assim que, aos poucos, a ideia de tirar a vida de alguém foi se fortalecendo em meu pensamento.  E, do mesmo modo foi se tornando uma obsessão.  Eu me perguntava o tempo todo; o que sente um homem quando mata?  Sente-se forte?  Sente-se talvez mais poderoso?  Isso me parecia ser um desejo tão primitivo e tão natural que até me parecia ser incorreto pensar algo ao contrário disto.  Como seria ver a vida se esvaindo dos olhos de uma pessoa exatamente no momento de sua morte e saber que você era o responsável por tal acontecimento?  Então, a princípio pensei em matar uma prostituta, mas seria um crime covarde.  E eu não era covarde.  O certo é que teria que ser com faca.  Ah...a ideia do sangue escorrendo me causava uma sensação incrível, me fazia crispar as mãos!  Então eu acendia um cigarro.  Dava alguns passos em qualquer direção até que aquela euforia louca de morte me abandonava e se diluia em minha alma.
          Até então minha vítima não tinha rosto, nome ou sobrenome.  Mas um dia, quando eu tomava meu café tranquilamente no mesmo boteco que vos descrevi no início da narrativa, o miserável de repente apareceu e eu soube no mesmo momento que aquele ser deplorável seria minha vítima.  No momento em que pus meus olhos nele imediatamente imaginei como seria cravar uma faca em seu peito até o cabo.  O sujeito era um pouco mais baixo do que eu, tinha um bigodinho nojento, olhos fundos, azuis, um gestual de idoso apesar de parecer ser até mais jovem do que eu e aparentava a estupidez daqueles que merecem ser condenados a morte.  Estava acompanhado de outros fiscais da prefeitura que usavam o mesmo jaleco repugnante que ele, fato que apenas certificava tratar-se de um verme, pois o serviço de fiscal não é outra coisa que trabalho de parasitas.  Talvez houvesse conseguido o emprego em virtude de algum parente bem colocado no prefeitura, quem vive no Brasil sabe que as coisas funcionam assim e sabe o quanto isto é vergonhoso.  Além do mais parecia ser tão idiota e digno de desprezo quanto todos os outros fiscais estúpidos que o acompanhavam.  Creio que todos conhecem o ditado que diz que cabeça vazia é oficina do diabo, então pus minha mente para trabalhar.  Em poucos dias entabulei conversação com o indivíduo me passando por um bom sujeito que apenas deseja uma prosa curta vez ou outra.  Logo fui ganhando sua amizade e em pouco tempo já estava mais íntimo dele.  No decorrer daqueles dias comecei a procurar pela internet um bom punhal que me servisse para a realização de meu intento.  Encontrei num site um belíssimo punhal que tinha uma lâmina de nove polegadas e um magnífico cabo de osso.  Era perfeito.  Pois bem, imprimi o boleto e paguei no banco a quantia de cento e vinte reais.  Depois de alguns dias estava recebendo em minha casa a ferramenta.  Agora tinha que ter uma plano, tinha que criar um plano.  Mas qual?  Como iria fazê-lo?  O certo é que eu teria que desaparecer depois de matar, não poderia ficar vagando pelas redondezas e muito menos esperar que a polícia me encontrasse na portaria ou em meu apartamento.  Então pensei em deixar meu emprego.  Isto me daria dinheiro suficiente para viajar para qualquer lugar do país, mas para onde ir?  Não importava.  Qualquer destino me serviria desde que estivesse em segurança.  Então o fiz, me demiti mas não avisei ninguém.  Esperei alguns dias, deixei minhas malas prontas e fiquei rondando pelas redondezas até que a oportunidade finalmente surgiu numa noite de sexta feira.  O sujeito se embriagava num outro boteco com seus colegas de trabalho, outros vermes como ele.  Então cheguei de forma aparentemente casual, cumprimentei a todos, pedi uma cerveja e fiquei observando o jogo de sinuca dos idiotas.  Trazia uma razoável quantia de dinheiro nos bolsos, uma quantia que me serviria de isca para atrair a atenção de minha vítima.  Trazia também meu punhal preso por uma fita adesiva em minha canela, algo absolutamente imperceptível.  Quando eles já se mostravam embriagados e cansados do jogo eu o desafiei.  Num primeiro momento ele se recusou mas quando eu falei em dinheiro ele imediatamente reconsiderou.  E com um sorriso maldito selou sua sentença de morte, o diabo é que alguns dos outros imbecis que o acompanhavam resolveram participar do jogo também.  Isto me custou mais uma hora pelo menos.  Perdemos, ganhamos, enfim; apenas perda de tempo.  Eu já estava ficando cansado daquilo tudo até que os imbecis resolveram finalmente ir embora.  Então eu aumentei o valor da aposta e desafiei pessoalmente Claudiomiro (este era o nome do desgraçado, mas ao contrário de mim, ao invés de detestar um nome como este o otário parecia se orgulhar do nome) para uma melhor de cinco.  O imbecil havia mordido a isca e talvez Lúcifer tenha providenciado o resto fazendo com que os outros todos fossem embora para suas casas.  De fato, havia chegado a hora dele.  E eu seria a ferramenta do diabo para mandá-lo direto para o inferno.  Começamos o jogo e eu ia permitindo que ele me vencesse errando bolas fáceis e fazendo-o pensar que era muito superior a mim.  Isso tudo também fazia aumentar a raiva que eu sentia por ele e me preparava ainda mais para o ato que eu pretendia cometer.  Enfim, já passava das onze da noite quando saímos do bar.  O verme se vangloriava o tempo todo se achando um Rui Chapéu.  Atravessamos uma avenida e começamos a caminhar por uma praça.  Uns vinte metros à frente eu já podia visualizar o local onde pretendia golpeá-lo.  Uma brisa soprava muito fresca, não havia quase ninguém pela rua e o imbecíl não parava de tagarelar.  Eu me sentia calmo e dava as últimas tragadas num cigarro antes de atirar a guimba longe.  Quando nos aproximamos da esquina eu já crispava as mãos quase sem poder me conter, mas mantinha o sangue frio.  Eu tinha que esperar até que nos aproximássemos das colunas de um edifício onde havia pouca luz e provavelmente nenhuma testemunha.
          Quando finalmente chegamos até onde eu queria, me abaixei para amarrar os cadarços de meus sapatos e disse a ele; ei espera um pouco aí, vou amarrar o sapato.  Na verdade, neste momento eu retirava o punhal que trazia oculto na minha canela.  Ainda abaixado, mas já com o punhal na mão eu virei a cabeça para observá-lo.  O idiota olhava para o lado e exalava fumaça tranquilamente.
           Imediatamente me levantei e cravei o punhal até o fim em seu peito.  Então tudo aconteceu exatamente como eu imaginara.  Ele me olhou nos olhos como alguém que implora por piedade e ao mesmo tempo quer perguntar por que.  Tentou defender-se, tentou mover-se e eu cravei o punhal ainda mais fundo fazendo com que ele soltasse um gemido estranho quase inaudível.  Segurei seus cabelos pela nuca com raiva enquanto pressionava o punhal em seu peito e sentia o sangue vazando quente e denso por entre meus dedos.  Ele parecia querer falar comigo, mas não conseguia.  E eu...eu tinha a morte nos olhos e Satã no coração.  Olhei bem para o rosto dele e cuspi com ódio em sua face.  Então ele começou a cair e eu o larguei.  Para ter a certeza de que morreria ainda fiz um corte bem fundo em sua garganta e abandonei o corpo ali mesmo atrás da coluna do edifício.  Arranquei minha camisa suja de sangue e joguei sobre o corpo.  Sai andando normalmente como se nada tivesse acontecido.  Subi correndo os quinze lances de escada até o meu apartamento.  Graças à Deus não encontrei mais ninguém no caminho por que no clímax em que me encontrava seria capaz de matar novamente.  Lavei minhas mãos, meu punhal e meu rosto rapidamente.  Vesti outra camisa, peguei minha mala e saí sem trancar a porta.
          Saí caminhando tranquilamente do edifício e andei quatro quilômetros até a rodoviária.  Comprei uma passagem para o primeiro ônibus que estava saindo dali direto para Curitiba e de lá comprei uma passagem para Buenos Aires onde hoje vivo tranquilamente sem ser perturbado por ninguém.  Bem, disto tudo que vos relatei já se passou mais de cinco anos.  Não sei o que será de mim no futuro, apenas sei que até hoje não me pegaram e sei também de uma outra coisa que não posso deixar de confessar.  Eu ainda guardo comigo o mesmo punhal e ás vezes, ainda sinto desejo de matar outra vez.