terça-feira, 20 de dezembro de 2011

SONETO DE DEZEMBRO

Como flecha varei manhã, tarde e noite e parei;
cravei-me na carne do outro dia
Na velocidade estupefata das horas eu furei
cada momento que inevitável surgia

no tempo ao qual não me dei conta no voo
das figuras e dos fatos em acontecimento
A carne do tempo tem sabor que causa enjoo
e envenena instilando um entorpecimento

Eu só queria ter dito alguma coisa
no momento certo e na hora exata
Como um golpe certeiro que, de uma só vez, mata

Eu só queria ter me dado conta;
em meio ao rebuliço fazer afronta
e saber que tudo se foi como num voo de flecha

                                                                                                Morpheus

sábado, 10 de dezembro de 2011

CONTO PUERIL

            Pela janela do carro onde ele se encostava com ambas as mãos e a ponta do nariz, podia-se ver as casas passando com seus muitos enfeites de luzes piscando e as famílias, algumas delas nas frentes das casas rindo e conversando e tantas ruas e tantas outras casas, cada uma tão diferente mas; de certo modo, um pouco iguais, aquilo tudo era muito divertido de se ver.  E ele podia também sentir, mesmo sem entender muito bem, uma atmosfera diferente naquelas noites quentes de dezembro.  Havia out-doors com grandes letras em néon que; aos olhos do jovem Ruddolf pareciam apenas muito bonitas já que ele ainda não entendia o que elas significavam.  A letra A parecia-lhe uma bocarra sorrindo para frente enquanto que a letra B parecia-lhe um gordinho qualquer e essas observações curiosas o distraiam enquanto eles rodavam com o carro pelas ruas.  O garoto realmente gostava de olhar para as imagens e as letras nos out-doors, nas placas e gostava de observar o movimento nas ruas, os carros, as pessoas, seu olhar era faminto e curioso.  Notou que as pessoas nas ruas ou em qualquer outro lugar pareciam estar num clima diferente, pareciam estar mais contentes, pareciam ter vontade de se reunir e tudo ao redor parecia contagiado por essa alegria incomum. Sem perceber encostou também a boca no vidro o que fez com que este se embaçasse e que fosse logo repreendido por sua mãe que, mesmo estando no banco da frente não descuidara dele. 
            Cada uma das ruas e avenidas pelas quais passaram pareciam ter, para Ruddolf, um encanto próprio.  Cada uma delas era um transbordamento de imagens e de coisas se movendo ao mesmo temo e causando-lhe exultancia, euforia.  Tudo parecia-lhe muito divertido!  Depois entraram numa rodovia e o colorido e a alegria das luzes deu lugar a uma escuridão absorvedora e tenebrosa.  Então ele se deitou no banco e ficou olhando para o teto do carro, ficou observando as sombras se movendo em movimentos bruxuleantes.  Mas após alguns minutos ele já se sentia cansado de fazê-lo e começou a notar novas luzes diferentes iluminando as janelas e invadindo o interior do veículo.  Rapidamente se levantou para olhar através dos vidros.  Estavam agora num estacionamento muito grande que lhe pareceu familiar e estava apinhado de carros naquela noite.  Mesmo assim o pai de Ruddolf não demorou muito até encontrar uma vaga.  Então desceram e seguiram caminhando entre os carros até chegarem à majestosa entrada do shopping que parecia gigantesca aos olhos do jovem Ruddolf.  Ele já havia estado ali outras vezes e reconheceu o lugar tão logo esticou o pescoço pela janela do carro, mas naquela noite tudo parecia estar um pouco diferente.  Fazia calor.  Uma brisa soprava leve e furtiva pela noite.  Aquele vento parecia trazer a cada momento um encantamento estranho, diferente, incomum e Ruddolf pensou a seu modo infantil de pensar que talvez fosse aquilo o tal espírito de natal do qual ouvira falar na televisão e em alguns outros lugares.  As pessoas todas pareciam estar mais felizes e mais sorridentes ou talvez menos preocupadas ou, até mesmo; talvez fossem as duas coisas ao mesmo tempo provavelmente, pensou Ruddolf.
            A entrada do shopping era sempre algo mirífico para o garoto.  Eram tantas coisas para se ver, tantos enfeites e tantas vitrines, todas aquelas lojas com tantas coisas para se comprar e tanta gente, músicas natalinas, muita comida e tudo se movendo ao mesmo tempo e o tempo todo sem parar!
            Logo na entrada ele avistou um papai Noel movendo os braços de modo estranho bem em frente a uma locadora de vídeo games.  Soltou da mão da mãe e disparou correndo até ele.  Tamanha foi sua surpresa ao se deparar então com um papai Noel que, na verdade, era de plástico, movia os braços mecanicamente para cima e para baixo e cantava uma música em inglês da qual Ruddolf nada entendia.
 - Não corra deste jeito Ruddolf! – esbravejou sua mãe tomando-o novamente pela mão.
            Seguiram então pela entrada principal de mãos dadas, o pai de Ruddolf não falava muito e nem parecia se importar muito com qualquer coisa.  Chegaram à uma loja de panos e tapetes.  Ruddolf não compreendia por que sua mãe queria comprar pedaços de panos se, em outras lojas já os vendiam como roupas prontas.  De qualquer modo, sua mãe tinha dessas coisas e aos poucos Ruddolf ia se acostumando com isso, havia momentos em que pensava que talvez um dia, quando crescesse e fosse adulto, talvez fosse capaz de entender melhor essas manias de sua mãe.  Aproveitou um momento de distração de seu pai que havia encontrado um amigo e conversava, para sair andando pela loja.  Sem querer acabou chegando a mesma porta por onde haviam entrado, olhou para fora e avistou de outro lado uma outra loja que parecia ser mesmo muito estranha.  Olhou de volta para o interior da loja e lá estava seu pai rindo com gosto junto de seu amigo, sua mãe com um pedaço de pano verde claro nas mãos parecia indagar algo a uma vendedora.  Olhou novamente para fora, um emaranhado de pernas de adultos numa espécie de dança frenética e; lá do outro lado do corredor a tal loja esquisita.  A curiosidade de ver mais de perto aquela loja e as coisas que ali se vendia somada à audácia infantil tão característica da idade de quatro anos e meio de idade fizeram com que tomasse uma decisão imediata.  Resolveu ir até lá.  Saiu andando sem pensar pelo meio da multidão e foi até a vitrine da outra loja.  Sentiu como se estivesse atravessando um rio, um rio de gente.
            Mas acabou não se impressionando muito com a loja, afinal eram apenas estátuazinhas estranhas de gesso, enfeites em artesanato, artigos para decoração e ele ficou pensando como é que poderia existir uma loja tão sem graça como aquela.  Como é que poderia haver gente idiota o suficiente para comprar coisas tão imprestáveis como aquelas! - pensou Ruddolf.  E foi distraído por esse pensamento que ele seguiu andando e olhando sossegadamente para as vitrines das outras lojas sem se preocupar com nada.  E sem perceber foi perdendo-se maravilhado no emaranhado de cores e formas, sem se dar conta foi sendo tomado por um transe infantil de admiração e continuou caminhando absorto pelos corredores do shopping onde tudo era novidade.  Seu caminhar era incólume e seu rumo totalmente incerto até avistar a alguns metros de distancia o playground, então apertou o passo naquela direção sem pensar em seu pai ou em sua mãe ou em si mesmo.  Sem pensar em nada correu até lá desviando e esgueirando-se por entre as pernas dos adultos.  E quando Ruddolf lá chegou perdeu o sentido do mundo.  Esqueceu-se de tudo e encantou-se com os brinquedos e as máquinas de fliperama e videogames e todas aquelas crianças se divertindo, assim como ele, enquanto o cheiro da pipoca e dos churros se misturavam no ambiente e todos pareciam estar felizes e era como se ele estivesse rompendo a barreira do mundo real onde tudo era sem graça e estivesse, naquele momento, tocando uma nova realidade, uma realidade feérica.  Havia um trenzinho que levava as crianças sobre os trilhos e Ruddolf não entendia por que ele apenas andava sobre aquele pequeno círculo, por que não construíam uma linha maior que atravessasse todo o shopping?  Havia um helicóptero e um disco voador elevados por braços de ferro e Ruddolf não entendia por que eles não voavam de verdade.  Havia uma grande centopéia que também deslizava sobre trilhos e carrinhos de pipoca, churros, algodão doce e muitas, muitas outras guloseimas.  Tinha carros de batida e esses ele entendia por é que batiam uns contra os outros, era divertido.  Um pouco mais ao fundo ficavam os fliperamas e as máquinas de videogames.  Ruddolf correu até lá para ver os jogos, mas os garotos maiores ficavam todos em sua frente, todos muito juntos das máquinas de modo que Ruddolf não conseguia enxergar nada do jogo.  Ele tentou empurrar e se enfiar pelo meio, chegar mais perto para poder ver os jogos, mas um dos garotos maiores o empurrou derrubando-o no chão e disse:
 - Sai fora moleque!  Vai andar na centopéia com a sua mãe!
            Ruddolf caiu sentado no chão e quase chorou enquanto os garotos maiores riam dele.  Chegou a esboçar um início de choro com os olhos se enchendo de lágrimas e o berro vindo pela garganta, mas conteve-se!  Foi forte, trancou a garganta com raiva.  Engoliu em seco, limpou os olhos com as costas das mãos, respirou fundo trancando sua dor e sua revolta no fundo do peito ao mesmo tempo em que um nó se formava em sua garganta.  Levantou-se devagar e limpou as mãos.  Afastou-se receoso.  Saiu andando lentamente de volta para a loja onde seu pai e sua mãe haviam ficado.
            Ia cutucando as unhas, olhando para os dedos com o queixo grudado no peito enquanto uma lágrima teimosa escorria de seu olho esquerdo.  Mas quando chegou até a frente da loja assustou-se e seu choro contido de repente cessou e deu lugar a estupefação ao ver uma mulher trancando as portas da loja onde estavam outrora a mãe e o pai de Ruddolf.  A mulher fechou a porta da loja e simplesmente foi embora conversando com outras duas moças.  O que tinha acontecido com seu pai e com sua mãe?  Para onde tinham ido?  Onde é que estavam?
            Olhou para os lados e viu gente rindo, falando, conversando...mas nada nem de seu pai e nem de sua mãe.  E ninguém naquele lugar parecia vê-lo.  A vontade de chorar estava voltando, sentiu-se incrivelmente sozinho no mundo dos adultos.  Sentiu medo, muito medo.  Um medo que nunca antes havia sentido.  Sentiu medo de ter ficado invisível, pois ninguém por ali o enxergava.  Saiu andando meio sem saber por que, saiu andando a procura dos pais.  E enquanto andava acabou se distraindo de novo e a vontade de chorar passou.  Esqueceu um pouco do medo e se distraiu olhando vitrines.  Notou que as lojas todas já iam fechando uma a uma e começou a pensar no que seria dele se ficasse preso para sempre naquele shopping.  Se ficasse o resto de sua vida sozinho e abandonado entre montras no escuro shopping fechado!  Mas ao mesmo tempo experimentou uma nova sensação de liberdade e imaginou que poderia mesmo passar o resto de sua vida por ali.  Lembrou-se de seu pai dizendo-lhe que não devia temer a escuridão por que a escuridão era tão somente a ausência de luz.  Imaginou-se velho, encanecido, barbudo, maltrapilho, andando à toa pelo shopping, sobrevivendo sentado num daqueles bancos e vendo o povo passar...então pensou; “é; talvez nem seja tão ruim assim!”  É claro, ele era um garoto inteligente, na verdade seria tudo muito fácil.  Principalmente se não houvesse fantasmas e nem assombrações e...era noite, o shopping começava a esvaziar e...logo ia fechar e...e se existissem mesmo fantasmas por lá?
            Esse pensamento o deixou desesperado, seu coração disparou, acelerou os passos, as mãos começaram a suar, suas orelhas estavam pegando fogo, era preciso encontrar a saída o mais rápido possível!  Pensou, puxou pela memória, lembrou do caminho para a saída e pôs-se a correr em direção a ela.  Com todas as suas forças corria movendo-se o mais veloz que podia mas foi ficando cansado.  Logo estava caminhando de novo, embora ainda sentisse medo.  Quando ultrapassou a saída principal do shopping caminhava com passos pesados e estava um pouco ofegante.  Ainda estava um pouco preocupado com sua mãe e seu pai mas estava confiante em reencontrá-los levando-se em conta que já havia se perdido antes e que os reencontrara.
            Finalmente fora do shopping sentiu uma agradável brisa tocar seu rosto.  Sentiu-se um pouco mais calmo apesar de ainda estar sozinho.  Levou a mão à testa enxugando o suor enquanto já olhava para o imenso estacionamento para tentar visualizar seus pais em algum lugar.  Não conseguia se lembrar exatamente onde seu pai havia estacionado o carro então passou a procurar com muita atenção andando pelo estacionamento e perscrutando em todas as direções.  Lembrou-se de que havia deixado no banco traseiro do carro de seu pai um de seus brinquedos, um carrinho verde que costumava levar para quase todos os lugares aonde ia, e passou então a olhar através dos vidros dos veículos mais parecidos com o carro de seu pai até finalmente encontrá-lo.  Ufa, que alívio!  Lá estava seu carrinho verde, lá estava o carro de seu pai, mas onde é que eles estavam?
            Ruddolf aproximou-se do carro devagar, chegou bem perto colocando as mãos no vidro, encostando o nariz e a boca no vidro para tentar observar melhor seu brinquedo no interior do veículo.  Então foi olhando por todo o interior do veículo, observando o assoalho, os bancos, seu carrinho sobre o banco...até seus olhos encontrarem, num momento nunca antes imaginado; outros olhos: negros, totalmente negros.  Redondos, ofensivos, vicerais!  Olhos que não tinham aquelas partes brancas ao redor das pupilas, eram olhos inteiramente pretos!  Eram olhos diferentes, jamais vistos antes.  Na verdade nem mesmo pareciam ser olhos de gente.  Eram olhos de um velho também muito esquisito que estava do outro lado do carro, observando-o através da outra janela com seu grande nariz monstruoso que trazia na ponta uma cabeluda verruga nojenta!  A pele parecia gordurosa e ele tinha uma barba branca manchada de vermelho que, para ele, Ruddolf, pareceu-lhe ser sangue!  A cabeça estava coberta por um capuz marrom que parecia ser uma túnica encardida.  Ruddolf estava imóvel, paralisado pelo medo que sentia ao se deparar com aquela figura bizarra!
            De repente o velho sorri deixando à mostra dentes pontiagudos avermelhados!  E Ruddolf simplesmente sai correndo desesperado de volta para o shopping, morrendo de medo daquele velho estranho.
            Ruddolf correu o mais depressa que pôde, correu de olhos fechados sem parar, sem pensar, sem olhar para trás e quando seu fôlego já estava se esgotando novamente ele acabou trombando com algumas pernas e caiu sentado no chão sem entender muito bem o que acontecia.  Ao abrir os olhos sentiu a felicidade a inundar-lhe novamente o coração.  Sentiu-se incrivelmente feliz, pois as pernas com as quais havia trombado eram as pernas de seu pai e ao lado dele estava sua mãe.  Que alegria!
            Depois de alguns abraços e de uma conversinha voltaram para o carro e; tamanha foi sua surpresa ao constatar que já não havia mais nenhum velho monstruoso por lá.  Então entraram no carro e foram embora.  Ruddolf largou-se exausto no banco de trás.  Suava encostado no banco e ainda observava pela janela.  Afinal, tinha sido uma noite e tanto!  Ficou olhando distraído pelo vidro enquanto o carro ia se distanciando do shopping.  Ele agora se sentia totalmente seguro e mais tranqüilo, mas jamais esqueceria aqueles acontecimentos ímpares.  Descansava apenas enquanto tudo ia ficando para trás, as luzes ao longe, os carros saindo, as calçadas, as pessoas nas calçadas...até que avistou, parado perto de uns latões de lixo, com um saco plástico preto nas mãos, aquele mesmo velho grotesco acenando para ele!
            Porém não disse nada e nem acenou em resposta.  Ficou praticamente imóvel olhando pela janela aquela figura monstruosa e misteriosa que, aos poucos, ia ficando para trás e se distanciando ao longe entre o brilho das luzes, o movimento dos carros e as pessoas que passavam caminhando.