sexta-feira, 30 de novembro de 2012

NOITE DE LUA

           Sentada de cócoras sobre o parapeito da janela de seu apartamento no vigésimo quinto andar, ela fumava.  Estática e nula.  Tinha a cabeça virada para o alto enquanto os olhos sequiosos de paixão observavam atentamente a brancura conspícua de seu amor flutuando no céu.  Momentos de solidão e silêncio como este pareciam-lhe eternos.  A brisa soprando leve, remexendo o tecido de sua blusa e deixando a mostra um pedacinho do bico de seu seio alvo e pequeno.  A boca borrada no canto do batom barato e sórdido.  Seus cabelos de um vermelho vivo se debatendo ao vento.  Seu rosto era o de uma menina que cresceu antes da hora, tinha uma testa pequena, sardas, belos olhos castanhos que estavam em perfeita sintonia com seu nariz fino e seus lábios carnudos.  O vento fraco lhe era agradabilíssimo embora tivesse, por vezes o pensamento tumultuado e um milhão de outros sentimentos se chocando em seu coração numa tempestade furiosa.  Ás vezes parecia pronunciar alguma coisa inaudível.  Tinha ressentimentos, rancores de várias pessoas.  Evitava outros pensamentos.  Era lacônica e sentia ódio de si própria.  Ódio por ter se tornado uma messalina cujo nome não importava a ninguém, um ódio que a oprimia muito mais quando se lembrava de que ela própria é que havia escolhido aquilo tudo, aquela vida.  Lembrava-se que no começo tudo parecera-lhe diferente e o fato de perceber o quanto havia sido tola, ingênua e idiota a torturava ainda mais.   No fundo, o problema é que ela era uma garota sensível e essa sensibilidade tão feminina a fazia sofrer muito ainda que se mostrasse sempre forte e carrancuda diante de tudo.  Seu coração batia descompassadamente, suava frio, mas não sentia medo por que muitas outras vezes já estivera sentada ali naquela posição.  Para uma pessoa que tivesse medo de altura seria terrível, mas não para ela.  No contorno dos olhos ainda trazia a maquiagem extravagante das noites perdidas que envolviam sua história dramática.  Mas quem, nestes dias de hoje, tinha tempo para ouvir histórias dramáticas e depoimentos melancólicos de uma jovem prostituta que queria apenas ser ouvida?
   Os clientes apenas a queriam com sofreguidão e urgência.  E os pagamentos eram antecipadamente efetuados para que ela tivesse a certeza de que não perderia seu tempo, aprendera isso logo no começo quando ingressara nesta profissão que agora já amaldiçoava.  Ás vezes ela se trocava por um par de sandálias, ás vezes por um almoço luxuoso e roupas novas, não tinha talento pecuniário.  Sua vida era esta mesmo, era a vida das pecadoras.  Inventara para si mesma a ideia de que tudo havia acontecido por falta de opção ou chance quando, na verdade, tudo havia sido por falta de inteligência e também em virtude de um comportamento priápico.  Mas por dentro, lá no fundo, era romântica.  Ela sofria.  Ela se entregava a audácia de sonhar com muitas outras coisas decentes, longínquas e distantes.  Mergulhava em devaneios e sonhos de uma bela família, sonhava docemente, fazia planos e imaginava as cores das paredes de sua nova casa, os móveis, os eletrodomésticos, as crianças, duas ou três ela imaginava a correrem pela casa enquanto ela preparava um saboroso bolo de laranja e todo o cheiro do bolo no forno estava pela casa, a campainha tocava um toque austero e então ela limpava as mãos no guardanapo e ia atender a porta para recepcionar as visitas e todos chegavam muito alegres e falantes e tudo era tão perfeito naquele momento, era tudo tão lindo naquele mundo que era apenas dela que ela chegava mesmo a suspirar sem perceber!  No entanto, toda vez que ela tinha que abrir as pernas novamente e fazer todas as encenações de gemidos, por que alguns exigiam tais coisas e outras mais, ela sentia o seu sonho tão bonito se desvanecer e se evaporar como fumaça no ar.  No começo se divertira, mas agora era como se esta violência a estivesse matando aos poucos.  Estava cansada.  Ia esmorecendo todo o seu vigor de mulher de vinte e poucos anos, ia se esgotando o seu humor, sua vontade de viver, todo o seu amor próprio.  Mas toda vez que podia refletir um pouco e decepcionar-se consigo mesma ela o fazia sentada sobre o parapeito de sua janela.  Era perigoso, é claro, mas talvez apenas um pouco mais fatal do que a vida que levava.  E agora, enquanto ela fumava tranquilamente e olhava para a lua com seus cabelos vermelhos esvoaçando ao vento, pensava no encontro que iria ter com seu amor lá no alto flutuando no céu entre as estrelas.
   Já há alguns dias esperava por este momento, por este dia em que completava vinte e três anos.  Já planejara tudo há algum tempo e agora finalmente se aproximava o momento em que saltaria para encontrar seu amor verdadeiro e único.
   Desde a infância sonhara com este momento, desde quando voltou seus olhos para o céu e apaixonou-se...  Lembrava-se perfeitamente daquele momento de sua infância, deitada sobre a grama com os braços abertos, olhando para o céu e se perguntando se os anjos existiam mesmo de verdade.  Mas para que perguntar sobre coisas que nunca poderia responder se tinha a lua inteira toda para ela?  Então ela olhou de forma diferente para a lua e percebeu o quanto ela era fascinante.  E foi neste dia, não se lembrava de quantos anos tinha, que fez para si mesma a promessa demasiadamente louca e apaixonada de um dia saltar para abraçá-la.  Foi uma promessa demente e infantil; mas como diz um ditado alemão, “crianças e loucos sempre dizem a verdade”.  E ela jamais se esqueceu desta promessa.  Desde então sempre que podia ela saia para ir deitar-se no quintal, naquele mesmo lugar sobre a grama onde podia ficar olhando para o céu e para a lua.  Sua mãe lhe impunha o horário das dez horas para voltar e se recolher para dormir, pois dez horas naquele sítio onde vivera com a família já era horário tardio.  Numa dessas noites em que olhava para o céu ela começou espontaneamente e; não posso deixar de dizer, inocentemente a tocar seu sexo e a descobrir-se.  Encontrou sozinha um prazer que, para ela ainda não tinha nada de imoral, ao mexer com seus dedinhos em sua vulva e em seu clitóris.  Por fim, tornou-se um hábito mesmo e quase todos os dias ela ia deitar-se sobre a grama para olhar o céu e a lua e todas aquelas estrelas e masturbar-se.  Ás vezes passava o dia todo esperando aquele momento chegar.  Tomava um banho, vestia-se e saia para entregar-se á sua lubricidade.  Deitava-se sobre a grama e começava a passar as mãos pelas coxas olhando para o céu e tendo como sua única testemunha a lua, ia erguendo sua saia bem devagar, baixava a calcinha até os joelhos e deixava sua vulva à mostra como a exibi-la para a lua.  Então ia se tocando, se acariciando, se alisando e todo seu corpo se arrepiava enquanto ela afagava a vulva para a lua  e enfiava o dedo nela e depois tirava e roçava seu clitóris, brincava com ele e depois passava a cheirar o dedo e saborear seu próprio cheiro num ritual muito particular, mas inocente e prazeroso de concupiscência e prazer.  Isso se tornou para ela o mais pleno dos prazeres, a mais divertida das brincadeiras, um dia chegou a alcançar tamanho gozo que pensou que fosse morrer e urinou na grama sem pensar em nada, totalmente entregue ao gozo e à delícia daquele momento.  Isso se deu por algum tempo, até o dia em que sua mãe a seguiu e a flagrou e então a censurou muito e lhe bateu severamente com uma varinha de marmelo e depois a colocou de castigo por duas semanas sem sair mais à noite.  Atitude esta que não adiantou muito por que ela continuou a masturbar-se em seu quarto às escondidas e muitas outras vezes aprontou tantas outras coisas que um dia, após já ter completado seus dezoito anos, resolveu fugir de casa e o fez.  Porém jamais se esqueceu de sua promessa e nunca a tirou do pensamento.  Por todos os lugares onde passava sempre mantivera a lembrança de sua promessa e o desejo vivo de realizá-la.
   Mas quando seu cigarro acabou não quis mais relembrar.  Virou de frente para o interior de seu apartamento e se sentou cruzando as pernas.  Lentamente foi passando os olhos por tudo, seus objetos pessoais, seus enfeites baratos, seu aparelho de som que já não funcionava mais e todos os seus móveis desgastados e sujos.  Olhava para as coisas com ternura, mas não como alguém que fosse sentir saudades.  Quantas farras já tinha feito naquele apartamento!  Quantas barbaridades para outras pessoas, mas para ela agora eram apenas lembranças de noites loucas e divertidas.  E lá estava ela relembrando de novo, presa ao passado e sem ter nenhuma perspectiva de mudança, nem mesmo uma lembrança bonita para lhe acofiar o coração.  A única recordação boa que poderia ter seria do dia em seu filho nasceu, mas já nem disto podia orgulhar-se.  Dera-o à sua mãe para que o criasse, protegesse e educasse, pois ela não queria saber de nada mesmo e o pai ela já nem tinha certeza de quem era.  A avó certamente saberia como criá-lo por que ela própria não saberia, nascera para viver para o mundo.  O suposto pai, pelo menos o que ela tinha quase certeza de o ser, estava cumprindo pena numa penitenciária estadual e nem sabia que tinha um filho.  E afinal ela não tinha muito saco para crianças, havia dias em que não era capaz nem de suportar a si própria, não conseguia nem aturar sua própria risada desafinada.  Ora, que fosse tudo para o inferno, ela pensava.  Observando o vazio pleno de seu apartamento já não quis mais pensar em sua vida, não queria mais lembrar que tinha um filho vivendo longe dela e junto com o avô e a avó que não a toleravam, não quis saber de mais nada e pensou que sua vida era uma sucessão de erros malditos onde ainda incluía dois abortos espontâneos, drogas, álcool, tudo de ruim que pode se querer, era uma vida maldita!  Já devia dois meses de aluguel e não tinha para onde ir depois de um despejo que era quase certo, mas o que lhe importava, de fato, é que sempre tinha dinheiro para o cigarro.  A forma como as coisas todas tinham se sucedido em sua vida já não lhe importavam, tampouco.  Afinal haviam sido tantas as atitudes e os caminhos errados que tomara na vida.  Não queria mais pensar em nada.
   Virou novamente de cócoras para o lado de fora da janela e passou a observar o mundo noturno lá embaixo.  Tantas palavras e olhares perdidos na dissonância do vento!  Alguém no apartamento ao lado estava tomando banho, ela podia ouvir o ruído do chuveiro e por todos os cantos da cidade as pessoas comiam, bebiam, fodiam e se fodiam sem parar, era o mundo.
   Olhou para o céu.  Seu amor estava lá num flutuar celestial.
   Baixou novamente os olhos e eis que tinha novamente aos seus pés a cidade soturna com seus roncos de motores, suas luzes de neon, seus out-doors coloridos e todo o ritmo da noite.  Porém agora a cidade lhe parecia triste.  Eram taciturnos os becos, os habitantes todos eram anônimos e alguém ouvia músicas eletrônicas em algum lugar.  Tudo o que havia de vivo e deplorável era o baixo meretrício de onde viera antes de alugar aquele apartamento, o baixo meretrício que a abraçara como um generoso e paterno senhor.
   Olhou para o céu novamente e avistou seu amor, seu único e verdadeiro amor  desde a infância, plena em alva e formosura que arrebatava-a instantaneamente num transe de expectativa que instilava esperança em sua alma sofrida.  Era chegado o momento.  Tinha absoluta certeza de que era chegado o momento; mas conteve-se ainda.  Acendeu outro cigarro.  Tragou lenta e demoradamente enquanto residia em seu ser um pensar quase filosófico ou talvez eu devesse dizer, muito filosófico.  Fumou. 
   Jogou fora a bituca e saltou para abraça-la.  Porém o acaso lhe proporcionou um susto derradeiro para que se desse conta talvez, se arrependesse talvez ou apenas se assustasse mesmo.  Quando saltou não ficou em pé antes de fazê-lo, não se preparou como alguém que vai mergulhar numa piscina mas apenas impulsionou todo o seu corpo e todo o seu peso tal qual uma rã ou um gafanhoto o faz.  Foi um salto tão mal feito quanto impensado e repentino de modo que ela acabou ficando, por uns raros e fugazes segundos, enroscada por sua camisola que acabou ficando presa entre a cama e a parede, não importa, o que importa é que ficou pendurada por alguns segundos e esse foi o momento tresloucado e mais lúcido em que se arrependeu de saltar para a lua.  Saltar para encontrar o seu amor e a morte.  Foi a mesma sensação de quem tropeça e cai de repente e se dá conta de que caiu instantaneamente mas no caso dela, ela apenas se deu conta (ao enroscar-se) de que não queria saltar.  Não queria morrer de verdade, não queria encontrar seu amor lua, não queria suicidar-se!  Mas já era tarde; o enrosco de sua camisola, como eu disse durou apenas alguns segundos e o arrependimento de ter saltado durou metade desse tempo pois o resto foi estupefação e nada mais.
   Sua queda foi rápida, sua morte foi instantânea e sua última visão foi a de seu amor flutuando no céu entre as estrelas.

                                                                                                                Morpheus 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

EXORTAÇÃO DA POESIA


No repentino momento da travada
um entrave atravessa a palavra pensada
                         entretanto
o travão não impede a rima tão esperada
que traduzida se refaz sem trato entrelaçada
                                              e entretecida
                                já se tem por acabada
      embora não tenha sido rima bem rimada

me leva a...

                           Introspecção
sem o intrínseco movimento muscular da traquéia
                            se esconde
a voz como um caminhoneiro que dorme na boléia

E sigo trotando na tradução dos trovões d'alma
triplicando-se travessos sobre a tarde tão calma
trêmulos e translúcidos transtornos
os trejeitos ultrajantes são retornos
para rimas sem sentido e intragáveis
encrustadas em poesias tão estáveis

Por fim, pensei, pensei, trespensei
e conclui que, de fato, nada sei
acho que até me perdi no que eu pensava
mas no fim, isso nem tanto me importava
por que o que, na verdade me importa
é toda a força que a poesia ainda exorta


                                                                     Morpheus