sábado, 30 de março de 2013

SUSPIROS NOTURNOS





            Junho de 1999




Acordei assustado, parecia que tinha ouvido algum ruído estranho lá fora.  Tinha finalmente conseguido cochilar um pouco depois de nem sei quanto tempo tentando apenas dormir um pouco.  Fazia frio.  Levantei rapidamente da cama.  Fui até cozinha, parei, olhei ao redor toda a escuridão do cômodo sem nem saber ao certo por que é que eu estava fazendo aquilo.  Minhas veias estavam pulsantes e quentes, eu não iria suportar mais uma noite.  Suportaria?
Aproximei-me da pia para pegar um copo d’água e quando olhei pela janela dois olhos amarelos e felinos me encaravam e no mesmo instante todos os pelos do meu corpo se arrepiaram e eu fiquei paralisado de terror.  A figura estranha do lado de fora da janela saiu andando lentamente e se afastou na direção do quintal enquanto eu ainda tentava assimilar aquilo em minha mente.  Eram dois olhos amarelos e uma figura escura, parecia um animal.  Chacoalhei a cabeça, neguei.  Era apenas uma alucinação.  Não era real.  Mas o meu medo era.  Ainda era.
Voltei ao banheiro e lavei o rosto, enfiei a cabeça embaixo da torneira.  Eu me sentia agitado.  Acabara de ter uma alucinação, minhas veias estavam em brasa, sentia vontade de arrancar os cabelos, precisa de uma...
Não.  Eu não precisava de nada, precisava apenas ser forte, precisava apenas continuar sendo eu mesmo.  Teria de enfrentar a noite.  Lavei o rosto novamente, lavei o rosto umas quinhentas vezes, fiquei com a cabeça debaixo da torneira até começar a tremer de frio e me sentir um pouco mais em paz.  Depois fiquei parado em frente ao espelho nem sei quanto tempo, a água escorrendo de meus cabelos e pingando em meu rosto macilento.  Pensava em fumar um cigarro, ainda não tinha me privado do cigarro.  Mas então uma lata de tinta vazia caia lá no quintal com seu ruído tão característico e depois uns ruídos estranhos que eu não pude perceber direito.  Seria a criatura?  Bobagem, eu pensei.  Mas comecei a me lembrar daquela imagem estranha.  Meu cérebro havia me pregado uma peça.  E eu precisava enfrentar isso, precisava ir lá fora e checar o que é que estava acontecendo.  Precisava enfrentar os meus medos, é isto o que um homem sensato faz.  Teria sido o vento?  Pensando bem eu não precisava checar nada porque não havia nada lá fora.  Busquei um cigarro com toda a sutileza do mundo para não acordar ninguém e fiquei fumando em silêncio sentado sobre o vaso.  Não conseguia conter a tremedeira e por um instante pensei que, na verdade, estava tendo uma atitude suspeita fumando sozinho no banheiro com a porta fechada.  Alguém poderia desconfiar que eu estivesse dando uma paulada*.  Saí e fui fumar na sala.  Sentei-me no sofá, mas não encontrava o cinzeiro.  Porra!  De repente fiquei muito nervoso por que eu não achava a merda do cinzeiro e a toda hora eu tinha que me levantar e jogar as cinzas do cigarro no lixo.  O cigarro não estava adiantando, eu não estava me sentindo mais calmo.  Quando me dei conta de mim estava procurando o cinzeiro debaixo do armário da cozinha, mas por que diabos eu estava fazendo aquilo?  Era absurdo!  Ninguém guarda um cinzeiro debaixo do armário da cozinha.  Na verdade eu estava procurando uma pedra.  Sim!  Eu estava procurando uma pedra, um pega**devia ter caído por ali e eu já tinha o careta, as cinzas, tudo.  A todo o momento eu limpava a boca, eu estava suando, eu estava perdendo o controle.  Apaguei o cigarro e me sentei no sofá escondendo o rosto entre os joelhos.  Escutei uns ruídos lá fora.  Tinha certeza que era uma alucinação, só podia ser, era uma alucinação voltando para querer tirar a minha paz.  Tentando tirar a minha paz?  Alucinações não têm vontade própria.  Talvez eu devesse tentar dormir novamente.  Mas não.  Eu não ia conseguir, estava excitado demais, estava nervoso demais, o que eu deveria fazer era distrair a minha mente.  Sim!  Busquei os meus fones de ouvido, meti um Black Sabbath no último volume e deixei o som invadir a minha mente.  Fiquei ali chacoalhando a cabeça de olhos fechados até cansar.  Quando cansei, fiquei de repente como que paralisado olhando para a porta.  O som estourando nos meus ouvidos, as guitarras fodendo com o mundo inteiro e então de repente tive a impressão de um vulto passando pelo corredor.  Foi tão assustador que caí do sofá e derrubei o walkman nem sei onde.  Me encostei na parede, tentei respirar fundo, eu precisava de um cigarro, mas o cigarro estava no banheiro e para chegar até o banheiro eu precisava passar pelo corredor onde eu tinha visto aquilo.  Mas o que era aquilo?  Um vulto?  Minha avó dizia que algumas pessoas que têm problemas mentais são acossadas por espíritos sem jamais se dar conta disto.   Por um instante pensei que isso ocorria comigo e comecei a coçar a cabeça desesperadamente.  Eu tinha vontade de chorar, meus nervos estavam em frangalhos, mas eu sabia, lá no fundo eu sabia que eu precisava ser forte.  Ser racional.  Porra!  Visão periférica, porra!  Caralho!  Tinha ouvido falar em algum documentário sobre isto, visão periférica.  É claro, havia sido apenas uma impressão e eu estava nervoso demais.  Mas por via das dúvidas me ajoelhei bem no meio da sala e rezei.  Ser miserável eu sou, somente recorro a Deus quando estou me cagando de medo.  Mas todos os homens não são assim?
Já me sentindo mais calmo me levantei e fui até o banheiro.  Peguei um cigarro e acendi.  Só me restavam mais dois no maço.  Eu estava parando.  Eu iria parar um dia; eu iria parar, mas agora eu precisava de um cigarro.  Precisava de mais um cigarro para enfrentar a noite, mas aquele acabou rapidamente e quase sem perceber eu acendi mais um e continuei ali pensando em Deus e pensando que eu poderia enfrentar a noite, aquilo tudo, eu precisava continuar tentando.  E o outro cigarro também havia acabado.  Resolvei tentar dormir novamente.  Fui para o quarto e me deitei.  Fechei os olhos.  Minha mente dava voltas, estava inquieta, minha mente sempre foi inquieta, mas agora parecia estar pior.  Era a abstinência, só podia ser.  Talvez eu devesse tomar um calmante.  Mas não seria pior?  Eu me revirava e me mexia a todo o momento sem conseguir conciliar o sono.  Virei de barriga para cima e fiquei de olhos abertos olhando para o teto.  Que Deus me ajudasse a dormir.  Como é que estaria o trailer agora?  Todos deveriam estar por lá, mas se eu fosse até lá e tomasse uma cerveja apenas seria muito mais fácil voltar e dormir depois e...  Não.  Eu não tomaria uma cerveja apenas, eu sei.  E se eu fumasse um baseado?  Eu iria me acalmar, eu sei que iria, mas não podia, não devia, uma coisa sempre leva a outra e eu...eu estava decidido a mudar a minha vida.  Devia pensar em outras coisas.  Sentei-me na cama, encostei-me à parede gelada.
Ouvi um ruído no quintal.  Eram passos, eu tinha certeza, eram passos.  Levantei da cama bem devagar arrepiado de medo.  Era a criatura, só podia ser.  Era o diabo tentando me alcançar de algum jeito.  Quando me dei conta estava agachado ao lado da cama tentando escutar alguma coisa mas não havia nada para se escutar.  Não havia ninguém lá fora, era tudo coisa da minha cabeça.  Estava paranoico.  Eu precisava de um cigarro.  Mas só tinha mais um e se eu fumasse teria que passar o resto da noite sem fumar.  Eu não suportaria, teria que aguentar mais um pouco.  Deveria deixar aquele cigarro para depois.  Mas talvez eu ainda tivesse um toco de baseado escondido embaixo da cama, eu sempre deixava um toco para o caso de necessidade e este era definitivamente um caso de necessidade.  Então me pus a procurar, levantei as cobertas, levantei o colchão, procurei por tudo e não encontrei nada.  Eu estava ficando nervoso, estava com aquelas tremedeiras terríveis, eu precisava de um trago, eu precisava de alguma coisa, meu Deus!  Eu precisava de um trago.  Estava arrancando os cabelos, mas eu tinha que ser forte, a todo o momento eu tinha em mente que eu tinha que ser forte, eu tinha que vencer o mundo, eu tinha que vencer a mim mesmo.  Eu tinha que me tornar senhor da minha vontade.  E o quarto estava todo bagunçado.  Meus pés estavam gelados.  Que horas seriam?  Olhar o relógio seria pior.  Eu estava limpando a boca a todo momento, estava com aquela mania novamente, era um efeito colateral eu acho.  Efeito da abstinência.
Pensei  em ler um livro.  Me lembrei do desespero de Kerouac em Big Sur.  Fui procurar o livro na estante, mas eu não achava.  Eu não achava.  Eu não achava.  EU NÃO ACHAVA.  ONDE É QUE ESTAVA A PORRA DO LIVRO?  CARALHO!  LIVRO FILHO DA PUTA!  Não estava ali.  Não estava ali.  Onde eu tinha guardado?  Eu tinha vendido?  Tinha emprestado?
Era melhor fumar um cigarro, eu estava muito nervoso.  Mas eu só tinha um cigarro e se eu fumasse teria que enfrentar toda a noite sem mais nenhum cigarro.  Eu conseguiria?
Eu queria ir até a cozinha tomar um copo d’água, mas talvez a criatura estivesse espreitando na janela, esperando para me encarar com aqueles olhos amarelos e aquelas elipses negras bem no centro de cada um deles.  Talvez fosse o diabo mesmo tentando me assustar.  Tentando me fazer ter um ataque cardíaco para sair me arrastando pelos pés e me levar para o inferno, mas eu não iria deixar.  Eu havia decidido mudar a minha vida.  Eu estava me afastando de algumas pessoas.  Eu iria arranjar um emprego, eu iria começar a trabalhar, eu precisava arranjar uma namorada, eu tinha que tentar, eu tinha que continuar tentando.  Eu não ia beber mais.  Não ia fumar mais pedra, mais nada.  Eu tinha que preencher a minha vida com deveres, eu tinha que fazer alguma coisa, eu tinha que dormir.   Mas eu não conseguia dormir.  Eu estava desconfiado que havia alguma coisa lá fora, mas eu sabia que era tudo bobagem, no fundo eu sabia que era tudo bobagem, eu sabia.
Mas era difícil.  Era tudo muito difícil.
Acendi meu último cigarro.  Não suportava mais.  Fumei.  Fumei o mais tranquilamente que pude, mas agora eu não tinha mais cigarros.
A noite era um oceano.  Mas durante algum tempo eu me sentia mais calmo.  E eu pensei que talvez fosse o momento de ir até lá fora e encarar a criatura.  Talvez fosse o momento de ir lá fora e olhar para um quintal vazio, por que quando eu estava nas ruas fumando pedra eu não tinha tanto medo assim.  Por que é que eu estava sentindo tanto medo agora?  Que paranoia era aquela?  Eu nem mesmo havia me drogado.  Eu estava careta, só tinha fumado uns cigarros, não tinha bebido nada.  Era a abstinência, eu sabia.  Lá no fundo eu sabia.  Eu não era como os outros nóias*** e era isto que iria me salvar.  Eu tinha informações, eu tinha fé em Deus, eu tinha força de vontade, eu acreditava em mim, eu sabia dos meus propósitos todos e havia me excedido, é claro, mas tinha que ser forte agora.
Decidi dar uma espiada no quintal, me aproximei da porta da cozinha com cautela e espiei pelo buraco da fechadura.  De repente senti aquele calafrio no corpo todo novamente, aquele medo irracional, aquele pavor louco!  Lá estava a criatura!  Sentada no muro e se balançando para lá e para cá como se fosse uma criança brincando comigo.  E ela parecia saber que eu a espreitava, mas por que se balançava daquele jeito?  Respirei fundo, tentando me acalmar.  Olhei novamente.  Parecia ser apenas um cara agora.  Um cara ali sentado, o filho da puta!  Não seria uma criatura então?  Mas é claro que não, criaturas não existem.  Era um cara sentado no muro.  De onde tinha vindo aquele filho da puta?  O que é que ele estava fazendo sentado no muro da minha casa e se balançando para lá e para cá como um idiota?  Resolvi acender a luz do quintal, mas hesitei no mesmo instante.  Por quê?  Não sabia muito bem.  Tudo era periclitante, silencioso, misterioso, confuso.  Havia mesmo uma pessoa ali?  Não seria apenas mais uma alucinação minha?  Agachei junto da porta.  Olhei novamente pelo buraco da fechadura e lá estava ele.  Balançava o tronco para a esquerda e para a direita, para a esquerda e para a direita...a cabeça estava oculta nas sombras da árvore da rua, coisa estranha!  Nunca tinha pensado em alguém se mexendo daquela maneira.  E se eu acendesse a luz talvez ele fugisse correndo pela rua ou; (de repente um branco na mente, hesitação, devaneio) ou talvez ele...talvez estivesse armado esperando para me matar!  Mas por quê?  Não.  Quem é que iria querer me matar?  Talvez estivesse esperando para roubar a casa, talvez fosse isso...  Olhei novamente pelo buraco da fechadura e lá estava ele, estava parado agora.  Parecia-me muito estranho aquilo tudo e eu não sei quanto tempo fiquei ali naquela posição observando pelo buraco da fechadura, com os pés congelando no chão, talvez uns vinte ou trinta minutos, mas aos poucos comecei a chegar numa conclusão; não havia ninguém ali.  Aos poucos fui percebendo que o que havia ali, na verdade era apenas uma camiseta colocada no varal de forma a dar a impressão em minha mente doentia de que era um cara sentado no muro!  Sim!  Agora eu percebia, era apenas uma camiseta.  Por quanto tempo fiquei imaginando que houvesse alguém ali?  Acendi a luz e tudo se esclareceu, era mesmo apenas uma camiseta pendurada no varal ali fora.  Que coisa!
Voltei para  a sala, liguei a tv.  Filmes antigos, programas religiosos, o que fazer?  Tomei um copo de leite gelado, deitei no sofá, estava cansado e minhas mãos estavam coçando.  De repente estavam coçando demais.  Eu coçava, coçava e elas coçavam ainda mais, estavam vermelhas e eu as esfregava uma na outra o tempo todo nervosamente.  Fui ao banheiro e as enfiei debaixo da torneira.  Melhorou.
Parei na cozinha, hesitei coçando o queixo.  De repente por entre as vidraças da sala de estar os primeiros raios de sol do novo dia começavam a surgir.  Outro dia começava e eu havia conseguido, eu havia sobrevivido mais uma noite.    




                                                                                            Morpheus














*gíria que designa o ato de fumar uma pedra de crack.
**termo utilizado pelos viciados em crack para se referir aos pedaços de crack utilizados a cada vez no cachimbo.  Cada pedaço de pedra fumado é “um  pega”
***pessoas viciadas em crack

domingo, 10 de março de 2013

BEBER-TE

                                                                       
                                                         à minha Rosa,
                                                                           Rosely                     
     

Vinho branco...vinho branco
das parreiras e videiras do nordeste
és meu saboroso trago branco
que aquela terra um dia me deste

E esses olhos são pequenas bolhinhas de vidro
repletas de vinho branco
Sua carne é o meu pão branco suculento,
eu sou o glutão da sua estirpe
quero cada gota da sua bebida de amor
quero cada exalar do teu cheiro núbil
para mim

Somente para mim
esposa minha - criança intempestiva -
mulher minha, bebida fina que me seduz o sangue
Meu vinho doce e branco que me embriaga
sem perder o sentido do desejo

Meu vinho doce e branco
das parreiras e videiras do nordeste,
lugar árido
que vindima apaixonante me trouxeste


                                                                     Morpheus