quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CASAL DE CRENTES




Numa dessas noites comuns de sexta-feira quando todos estão querendo apenas relaxar e descansar minha mulher teve a comum ideia de comprar umas pizzas para o jantar. Um novo estabelecimento que vende esfirras e pizzas tinha recém-aberto as portas e como a noite estava fria ela pediu para que eu fizesse a fineza de ir buscar. Peguei o dinheiro, coloquei uma jaquetona velha toda estropiada que eu tinha há muitos anos, coloquei meu boné de idoso na cabeça e me mandei. 
Chegando ao estabelecimento, pedi as pizzas e fui avisado de que poderia demorar um pouco além do comum em virtude de um probleminha que os caras estavam tendo com um dos fornos. Pedi um chope e colei minha barriga no balcão para esperar e dar uma boa sacada no ambiente. 
Havia uma família na mesa do lado de fora e um casal de namorados que estavam decidindo o que pedir. Na parte de dentro do estabelecimento, ao fundo, duas garotas comiam esfirras, tomavam refrigerante e riam muito. Havia uma mulher com dois garotos também se deliciando com esfirras e um sujeito sentado numa cadeira junto à parede do outro lado esperando a senha dele. Um sujeito gordo também estava no balcão tomando chope e esperando o pedido dele. Logo chegaram mais algumas pessoas, fizeram seus pedidos e ficaram por ali a esperar. Eu bebia tranquilamente e observava criterioso o lugar e as pessoas todas que zanzavam por ali. 
Foi quando eles chegaram com suas caras emburradas caminhando depressa com suas bíblias debaixo de seus braços. Ele, de camisa social listrada rosa bem suave e branco, jeans, sapatos de bico quadrado, calvo; os poucos cabelos que lhe restavam penteados todos para trás e um relógio quadrado dourado no pulso. Era um sujeito de estatura mediana, um e setenta e cinco talvez, barrigudo, atarracado, vinha com as sobrancelhas grossas cerradas e o nariz pontiagudo pronto para atingir alguém. Estava visivelmente descontente enquanto apertava sua bíblia com força e falava sem parar com a mulher que o acompanhava, tenho a impressão de que a estava repreendendo por alguma coisa. Mas pelo que? Eles não estavam voltando da igreja? Penso que as pessoas deveriam sair felizes depois de ir à igreja, não deveria ser assim? A mulher era alta, estranhamente mais alta do que ele e também mais alta do que eu, acho que tinha mais ou menos um metro e noventa de altura. Era forte, um pouco gorda mas não muito, seios médios, bunduda, morena, cabelos cacheados presos num coque atrás da cabeça que tinha feições redondas, olhos redondos, nariz chato, boca carnuda. Estava visivelmente decepcionada ou simplesmente de saco cheio de ficar ouvindo o marido falando sem parar aquela algaravia toda com ela. Trajava uma blusa verde comum, a bíblia bem presa debaixo do sovaco direito, uma saia muito comprida bege que escondia completamente suas pernas e uma sapatilha muito simples e também bege. Se você olhasse bem para ela chegando ali ao lado dele naquele momento poderia dizer que a expressão no rosto dela queria dizer "puta cara chato" ou "ai meu Deus, onde é que eu fui amarrar meu burro". 
Era um casal muito feio e esquisito, não posso deixar de dizer. Mas o mais estranho e o que mais me intrigava era o motivo pelo qual ele brigava tanto com ela. O que ela poderia ter feito? Era óbvio que tinham acabado de sair da igreja próxima dali do bairro e eu de repente me perguntava o que é que uma mulher pode fazer para chatear tanto um cara dentro de uma igreja? 
Pararam na frente do estabelecimento e continuaram sua estranha maneira de relacionar-se. A mulher calada o homem falando sem parar na orelha dela, que olhava para o chão. Eu tomei um gole de chope e pensei; será que eles estão decidindo o que pedir? Mas creio que não. Ele estava falando de alguma outra coisa no ouvido dela. Parecia um Hitler gesticulando e falando de maneira contundente. Parecia falar e repetir as mesmas coisas sem parar. 
Por fim a mulher saiu de perto dele e foi ao banheiro enquanto ele ficou parado ali comendo unha. Quando ela saiu não se aproximou dele. Foi sentar-se no fundo perto das duas meninas que eu havia mencionado anteriormente. Sentou-se e ficou olhando para os dedos. O homem depois de ter dispensado o garçom já por duas vezes aproximou-se, entrou, colocou sua bíblia sobre uma das mesas e as duas mãos sobre o encosto de uma das cadeiras. Ficou observando a mulher lá no fundo com um olhar faiscante. Creio que estava sentindo muito raiva. A mulher, por sua vez, parecia serena observando os dedos. Então, depois de alguns minutos o homem pegou sua bíblia e se aproximou da mulher. Sentou-se ao lado dela devagar e colou a bíblia sobre a mesa. E então foi a vez de ela começar a falar. Falou durante uns cinco minutos sem parar enquanto e homem se abaixava e colocava as mãos sobre os joelhos e olhava lá para fora como se estivesse esperando alguém. Estava vermelho e eu creio que era de ódio. Ás vezes ele se se encostava na cadeira e levava as mãos ao rosto, esfregava e depois colocava as mãos novamente sobre os joelhos. E então a mulher de repente parou de falar e eles ficaram alguns minutos em silêncio. Ele com os mesmo trejeitos e ela apenas com a cabeça baixa olhando para os dedos. Parecia que a discussão havia finalmente acabado e restava aquele clima de rancor sobre alguma coisa. E então depois de alguns minutos a mulher se levantou e foi fazer o pedido. Aproximou-se do caixa, pegou o cardápio e ficou lendo por algum tempo. Voltou e sentou-se. Acho que perguntou alguma coisa que o sujeito respondeu com rispidez e levantou-se carregando sua bíblia e saiu do estabelecimento para observar a rua. A mulher continuou ainda algum tempo ali sentada sem saber o que fazer. Ficou observando o marido de longe. Logo se levantou e foi atrás dele. Ela caminhava de uma maneira lenta e intransigente. O homem, talvez por afetação, ao vê-la aproximar-se novamente dele voltou alguns passos e sentou-se numa das cadeiras do lado de fora. Eles estavam visivelmente numa disputa sem sentido, estavam de saco cheio um com o outro sem dúvida nenhuma. A mulher agora é que observava a rua. 
Algumas pessoas reclamavam da demora e eu tomava meu chope. Duas mulheres chegaram e começaram a se engraçar com o sujeito gordo que tomava chope perto de mim. Fizeram seus pedidos e foram sentar-se para esperar. Depois vieram dois bêbados rindo muito e falando com todos. 
Quando eu voltei minha atenção ao casal de crentes o homem estava novamente em pé ao lado da mulher falando e gesticulando como Hitler em seus discursos. Por que é será que brigavam? Ciúmes? Crentes sentem ciúmes? Quando vão à igreja? Seria isso? Não, não podia ser. A mulher estava com os braços cruzados sem nada argumentar. Eu pensava comigo que se era para ir à igreja e sair daquele jeito era melhor não ir. Que coisa! Logo a mulher afastou-se e veio fazer o pedido. Parecia que tinham chegado num consenso. Será que estavam discutindo o sabor da pizza? Ou o que pedir? Pizza ou esfirras 
Depois de fazer o pedido ela voltou lá para fora e eles sentaram-se numa mesa longe do meu campo de visão. Eu fiquei um tempinho por ali tomando meu  chope e sacando as outras pessoas do lugar. Logo minhas pizzas ficaram prontas e eu as apanhei juntamente com a garrafa de refrigerante e saí. Dei uma olhada para trás para ver onde o casal de crentes estava e os vi encostados numa mesa junto da parede do lado fora. O homem olhava para um lado e a mulher para o outro; sentados com suas bundas viradas uma para a outra. Sabe quando o casal está brigado e dorme na cama, cada um do seu lado. Era exatamente assim que eles estavam se comportando à mesa enquanto esperavam o pedido, após terem saído de um culto "supostamente abençoado".


                                                                                               Morpheus

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

PELA JANELA


Sinto muito crianças 
mas hoje eu não poderei brincar com vocês 
tudo o que eu quero hoje é a solidão 

quero estar só 

Vou rasgar os pulsos da razão 
e deixar que o sangue pingue na folha 
em forma de poesia 

Vou prestar atenção ao silêncio 

Mas antes que a vida se vá totalmente 
vou costurar a sangue frio 
a carne dilacerada 
e volver à realidade 
como alguém que sai de um banho tépido 

E assim... 
Louco & demente & devastado por um sentimento inefável 
vou pulverizar sonhos pela janela 



                                                      

                                                                         Morpheus

sábado, 10 de outubro de 2015

POESIA HEREDITÁRIA



Não escolhi ser poeta; assim nasci
e vivo quase sem medo
das vozes todas e do aedo
E foi desta maneira que eu cresci

Não escolhi nem mesmo nascer
mas aqui estou e já sou pai
enquanto toda vida se esvai
em cada vermelhidão de entardecer

Quero romper a mesmice num impropério cauteloso
quero usar palavras
à toa, apenas por usar... e até ser garboso

como um dia foram os antigos poetas irmãos
que mais escreveram
do que juntas as minhas duas mãos


                       
                                            Morpheus