segunda-feira, 30 de setembro de 2013

RELATO DE MANÉ



            Foi numa noite friorenta de 97.  Talvez maio ou junho; não me recordo exatamente o mês, mas me recordo muito bem que eu havia decidido matar aula junto com uns caras e sair em busca de fumo.  Era uma época obscura em que eu tinha mais prazer em caminhar sozinho à noite pelas ruas do que viver entre as pessoas à luz do dia.  Nessa época eu andava com uns camaradas que usavam roupas largas e ouviam rap.  Mas é claro que eu tinha o meu próprio estilo, curtia meu rock’n roll antigão e usava uma jaqueta surrada jeans para cobrir o meu corpo magricelo, fumava como um desgraçado, era cabeludo, revoltado e estava lendo “AS FLORES DO MAL” por isso naquela mesma noite eu carregava o livro comigo quando atravessamos o morro, a rodovia e entramos no bairro para “descolar” um baseado.  “Trombamos” uns malucos já conhecidos, fizemos uma “intera *” e um dos nossos camaradas logo foi fazer o “corre” montado em sua bike de bicicross.  Algum tempo depois ele surgia com a nossa maconha tão preciosa e finalmente nos púnhamos à tarefa de “bolar**” um baseadão.
            É comum e todos sabem disto, relacionar o uso de entorpecentes a atitudes criminosas mas, para mim, o uso de entorpecentes (principalmente naquela época) sempre foi relacionado a outras coisas, algo mais...místico talvez.  Eu gostava de fumar para escrever poesia.  Gostava de fumar para ter sensações diferentes, para me desligar, entrar em contato mais íntimo com a minha mente e com os meus devaneios, encontrar um outro estado de consciência.  Enfim, eu usava para ficar muito louco mesmo e devo admitir que gostava muito disto.  O fato é que o uso de entorpecentes, para mim, estava muito mais relacionado ao tão conhecido bordão “sexo, drogas e rock’n roll” do que a criminalidade e todos os problemas sociais das periferias.  Ser saudosista e quase desconectado das coisas ao redor era uma novidade que não chegava a ser conflitante mas talvez apenas exótica do ponto de vista da maioria das pessoas que se lixavam para as coisas das quais eu me interessava.  Coisas como literatura e filosofia, por exemplo.  De qualquer modo, nunca me preocupava com a questão “criminal” e tampouco me perturbava com o ato ilícito em si.  Mas os outros caras com os quais eu costumava partilhar a erva tinham uma visão absolutamente diferente da maconha.  Para eles fumar um baseado era ser um fora da lei e eu pouco me importava com isso.  Mané era um desses caras.  Mané não estudava com a gente, mas vivia na periferia mais ou menos próxima da escola onde estudávamos.  Era irmão mais velho de um dos nossos “trutas” e, pelo pouco que eu soube vivia também envolvido em outras atividades criminosas como roubos, furtos, enfim.  O cara era todo “serião”, invocado.
            Depois de termos fumado o primeiro baseado resolvemos buscar um vinho para completar a “brisa”.  Juntaram uns trocados e me escalaram para ir buscar a garrafa já que eu já não tinha mais nenhum puto no bolso.  Eu fui e quando voltei Mané já estava trocando umas ideias com os caras.  Cumprimentei o mano, abri a garrafa e fui passando para os outros manos que estavam na “banca”.  Eu já estava muito louco.  Estava “bruxo”, como alguns costumavam dizer.  Trocamos altas ideias.  Mas num dado momento Mané resolveu começar a falar.  De repente parecia revoltado com alguma coisa, parecia até que estava revoltado conosco.  Seu semblante tomou uma expressão grave e o cara começou a falar como se estivesse bravo:
            - Cês; safra nova que tão tudo começano agora num sabe nada de nada.  Cês ainda tem muito que aprende – e então começou a divagar – eu lembro mano; quando o Tito ainda usava fralda eu já colava no campinho ali embaixo prá faze avião pos malaco.  Lembra do Túlio Porcão?  Lembra do Aritana, Tito? Lembra do Pendengo? Lembra do Jocão? – e Tito confirmava – Os malaco me dava um tijolo prá levar muquiado na mochila lá prá vila Irineu.  Isso aí eu tinha o que? Nove? Dez anos se pah!  Nem esquentava nem nada, ia no rolê loco memo.  Na escola então, nóis colocava  uns “riscão***” em cima do corrimão da escada e saia alucinado no movimento.  Ché, quantas veiz entrei muito loco na crasse!  Pa jogá ali no campinho então, ché; quantas veiz num jogava muito loco só dano canelada!
            Mas de repente Mané parecia hesitante e calara-se.  E todos haviam se calado também, apenas bebíamos e fumávamos.  A noite seguia, a vida seguia, as coisas todas estavam acontecendo em todos os arredores da cidade e nós estávamos todos ali parados na esquina.  Calados.  Atentos e respeitosamente ouvindo tudo o que aquele sujeito de repente queria compartilhar conosco.  Então, percebi que os músculos da mandíbula de Mané se contraiam com força e era como se ele estivesse mordendo os próprios dentes.  Ele nos encarava firmemente quando falava, mas agora parecia hesitar realmente, parecia pensar no que ia dizer e depois de alguns instantes de silêncio ele começou a falar novamente:
            - A vida é assim memo rapaziada.  Hoje cê tá aqui, amanhã cê num tá.  Cê nunca sabe.  Eu matei um dia – e remordia-se – matei memo!  E eu to aqui agora trocando uma ideia cum vocêis.  O malaco tá lá...debaxo de sete palmo de terra.  A vida é essa.  Eu falo pro ceis.  Era eu ou ele no baguio, então é o seguinte parcero; apertei memo!  Remorso mano?  Nem sei, quem sabe?  Cada um é cada um, cada um na sua caminhada.  Eu pensei, penso.  Tem umas coisa que é foda.
            E calara-se durante alguns segundos olhando para o chão para logo em seguida recomeçar:
            - É por isso que eu falo pro ceis, ande pelo certo, nunca pelo errado.  Sumemo.  Essa que é a moral do baguio, morô?  Corra pelo certo por que a guerra mano, a guerra é a guerra.  O que vira memo é a paiz.  Que nem ocê aí – e apontou a garrafa que segurava na minha direção – ocê é muleque ainda, mais vive na paiz cum tudo mundo, cheio dos terécotéco e dos badulaque aí no pescoço e numseioquê; mas cê pode vê que tudo os mano aqui tá na camaradagê cocê, certo.  Eu falo pro cê, cê tá ligado; é paiz mano, paiz!  Por que a guerra malandro...a guerra é a morte mano!  Antes a mãe dele chora que a minha, num é não?  Tô certo ou to errado? ...Qué sabe mano, foda-se! Falo pro ceis aí que eu vô saí fora rapaziada – e saiu caminhando meio cambaleante para ir embora para a casa dele.              
            Nós continuamos ali por mais algum tempo, depois fomos para o bar que ficava na rua detrás.  Jogamos umas partidas de bilhar e depois eu voltei para o bairro onde eu morava.  Fiquei dando umas voltas inúteis pelas ruas lúgubres e esperando que a luz de casa se apagasse e eu tivesse a certeza de que meus pais já tinham ido para a cama para que então eu pudesse chegar em casa com os olhos em brasa e o bafo de cachaça sem que a minha mãe pudesse perceber.
            Alguns meses depois disso ficamos sabendo da morte de Mané.  O cara havia sofrido um traumatismo craniano num trágico acidente de moto.  Morreu jovem, devia ter na época uns trinta anos ou menos.  Mas nunca me esqueci das coisas que ouvi naquela noite.  O remorso daquele sujeito muito provavelmente o acompanhou até o último dia de sua vida.  O fato é que Mané também era uma vítima, uma vítima talvez de uma cultura violenta e selvagem, uma vítima de um sistema, mas talvez uma vítima de si mesmo...eu não sei...quem sabe? E aquele papo, aquele desabafo do pobre coitado do Mané que queria demonstrar coragem ficou entre algumas das coisas que eu ouvi, vivi e que eu carregarei comigo por toda a vida.
Eu nunca soube o nome correto de Mané, mas espero que ele esteja num bom lugar e que descanse em paz. 


*       intera :  rateio
**     bolar:   preparar o cigarro de maconha
 ***  riscão:  carreira de pó de cocaína




                                                                                               Morpheus