Numa dessas noites comuns de sexta-feira
quando todos estão querendo apenas relaxar e descansar minha mulher teve a
comum ideia de comprar umas pizzas para o jantar. Um novo estabelecimento que vende esfirras e pizzas tinha recém-aberto
as portas e como a noite estava fria ela pediu para que eu fizesse a fineza de
ir buscar. Peguei o dinheiro, coloquei uma jaquetona velha toda estropiada que
eu tinha há muitos anos, coloquei meu boné de idoso na cabeça e me mandei.
Chegando ao estabelecimento, pedi as pizzas e fui avisado
de que poderia demorar um pouco além do comum em virtude de um probleminha que
os caras estavam tendo com um dos fornos. Pedi um chope e colei minha barriga
no balcão para esperar e dar uma boa sacada no ambiente.
Havia uma família na mesa do lado de fora e um casal de
namorados que estavam decidindo o que pedir. Na parte de dentro do
estabelecimento, ao fundo, duas garotas comiam esfirras, tomavam
refrigerante e riam muito. Havia uma mulher com dois garotos também se
deliciando com esfirras e um sujeito sentado numa cadeira junto à parede do outro
lado esperando a senha dele. Um sujeito gordo também estava no balcão tomando chope e esperando o pedido dele. Logo chegaram mais algumas
pessoas, fizeram seus pedidos e ficaram por ali a esperar. Eu bebia
tranquilamente e observava criterioso o lugar e as pessoas todas que zanzavam
por ali.
Foi quando eles chegaram com suas caras emburradas
caminhando depressa com suas bíblias debaixo de seus braços. Ele, de camisa social
listrada
rosa bem suave e branco, jeans, sapatos de bico quadrado, calvo; os poucos cabelos que
lhe restavam penteados todos para trás e um relógio quadrado dourado no pulso. Era um sujeito de estatura
mediana, um e setenta e cinco talvez, barrigudo, atarracado, vinha com as
sobrancelhas grossas cerradas e o nariz pontiagudo pronto para atingir alguém.
Estava visivelmente descontente enquanto apertava sua bíblia com força e falava
sem parar com a mulher que o acompanhava, tenho a impressão de que a estava
repreendendo por alguma coisa. Mas pelo que? Eles não estavam voltando da
igreja?
Penso que as pessoas deveriam sair felizes depois de ir à igreja, não deveria
ser assim? A mulher era alta, estranhamente mais alta do que ele e também mais
alta do que eu, acho que tinha mais ou menos um metro e noventa de altura. Era
forte, um pouco gorda mas não muito, seios médios, bunduda, morena, cabelos cacheados
presos num coque atrás da cabeça que tinha feições redondas, olhos redondos,
nariz chato, boca carnuda. Estava visivelmente decepcionada ou simplesmente de
saco cheio de ficar ouvindo o marido falando sem parar aquela algaravia toda com ela. Trajava uma
blusa verde comum, a bíblia bem presa debaixo do sovaco direito, uma saia muito
comprida bege que escondia completamente suas pernas e uma sapatilha muito
simples e também bege. Se você olhasse bem para ela chegando ali ao
lado dele naquele momento poderia dizer que a expressão no rosto dela queria
dizer "puta cara chato" ou "ai meu Deus, onde é que eu fui
amarrar meu burro".
Era um casal muito feio e esquisito, não posso deixar de
dizer. Mas o mais estranho e o que mais me intrigava era o motivo pelo qual ele
brigava tanto com ela. O que ela poderia ter feito? Era óbvio que tinham
acabado de sair da igreja próxima dali do bairro e eu de repente me perguntava
o que é que uma mulher pode fazer para chatear tanto um cara dentro de uma
igreja?
Pararam na frente do estabelecimento e continuaram sua
estranha maneira de relacionar-se. A mulher calada o homem falando sem parar na
orelha dela, que olhava para o chão. Eu tomei um gole de chope e pensei; será
que eles estão decidindo o que pedir? Mas creio que não. Ele estava falando de alguma outra coisa
no ouvido dela. Parecia um Hitler gesticulando e falando de maneira
contundente. Parecia falar e repetir as mesmas coisas sem parar.
Por fim a mulher saiu de perto dele e foi ao banheiro
enquanto ele ficou parado ali comendo unha. Quando ela saiu não se aproximou
dele. Foi sentar-se no fundo perto das duas meninas que eu havia mencionado
anteriormente. Sentou-se e ficou olhando para os dedos. O homem depois de ter dispensado
o garçom já por duas vezes aproximou-se, entrou, colocou sua bíblia sobre uma
das mesas e as duas mãos sobre o encosto de uma das cadeiras. Ficou observando
a mulher lá no fundo com um olhar faiscante. Creio que estava sentindo muito
raiva. A mulher, por sua vez, parecia serena observando os dedos. Então, depois
de alguns minutos o homem pegou sua bíblia e se aproximou da mulher. Sentou-se
ao lado dela devagar e colou a bíblia sobre a mesa. E então foi a vez de ela
começar a falar. Falou durante uns cinco minutos sem parar enquanto e homem se
abaixava e colocava as mãos sobre os joelhos e olhava lá para fora como se
estivesse esperando alguém. Estava vermelho e eu creio que era de ódio. Ás
vezes ele se se encostava na cadeira e levava as mãos ao rosto, esfregava e
depois colocava as mãos novamente sobre os joelhos. E então a mulher de repente
parou de falar e eles ficaram alguns minutos em silêncio. Ele com os mesmo
trejeitos e ela apenas com a cabeça baixa olhando para os dedos. Parecia que a
discussão havia finalmente acabado e restava aquele clima de rancor sobre
alguma coisa. E então depois de alguns minutos a mulher se levantou e foi fazer
o pedido. Aproximou-se do caixa, pegou o cardápio e ficou lendo por algum
tempo. Voltou e sentou-se. Acho que perguntou alguma coisa que o sujeito
respondeu com rispidez e levantou-se carregando sua bíblia e saiu do estabelecimento para
observar a rua. A mulher continuou ainda algum tempo ali sentada sem saber o
que fazer. Ficou observando o marido de longe. Logo se levantou e foi atrás
dele. Ela caminhava de uma maneira lenta e intransigente. O homem, talvez por
afetação, ao vê-la aproximar-se novamente dele voltou alguns passos e sentou-se
numa das cadeiras do lado de fora. Eles estavam visivelmente numa disputa sem
sentido, estavam de saco cheio um com o outro sem dúvida nenhuma. A mulher
agora é que observava a rua.
Algumas pessoas reclamavam da demora e eu tomava meu chope.
Duas mulheres chegaram e começaram a se engraçar com o sujeito gordo que tomava
chope perto de mim. Fizeram seus pedidos e foram sentar-se para esperar. Depois
vieram dois bêbados rindo muito e falando com todos.
Quando eu voltei minha atenção ao casal de crentes o homem
estava novamente em pé ao lado da mulher falando e gesticulando como Hitler em
seus discursos. Por que é será que brigavam? Ciúmes? Crentes sentem ciúmes? Quando vão à
igreja? Seria isso? Não, não podia ser. A mulher estava com os braços cruzados
sem nada argumentar. Eu pensava comigo que se era para ir à igreja e sair
daquele jeito era melhor não ir. Que coisa! Logo a mulher afastou-se e veio
fazer o pedido. Parecia que tinham chegado num consenso. Será que estavam
discutindo o sabor da pizza? Ou o que pedir? Pizza ou esfirras?
Depois de fazer o pedido ela voltou lá para fora e eles
sentaram-se numa mesa longe do meu campo de visão. Eu fiquei um tempinho por
ali tomando meu chope e sacando as outras pessoas do lugar. Logo minhas
pizzas ficaram prontas e eu as apanhei juntamente com a garrafa de refrigerante
e saí. Dei uma olhada para trás para ver onde o casal de crentes estava e os vi
encostados numa mesa junto da parede do lado fora. O homem olhava para um lado
e a mulher para o outro; sentados com suas bundas viradas uma para a
outra. Sabe quando o casal está brigado e dorme na cama, cada um do seu lado.
Era exatamente assim que eles estavam se comportando à mesa enquanto esperavam
o pedido, após terem saído de um culto "supostamente abençoado".
Morpheus
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