O homem era um cético. À sua maneira caipira de ser; era também um
filósofo. Já carregava uma boa bagagem
de vida, havia vivido o suficiente para poder descrever, interpretar e entender
muitas das coisas das quais vivera mas; como todos nós, também carregava
consigo perguntas que ainda não tinham resposta. Lera por três vezes seguidas, toda a bíblia,
mas jamais se convertera definitivamente ao cristianismo, muito embora em
alguns momentos sentisse uma necessidade (que ele considerava estranha) de Deus. Tinha a sua família composta, além de si
mesmo, de sua esposa e três filhos, um menino e duas meninas. Era dono de seu próprio lar. Na verdade vivia numa pequena chácara onde se
dedicava aos seus trabalhos manuais e, como eu disse à priori, ao nobre ofício de pensar. Geralmente dormia cedo para, no outro dia
levantar-se pela manhã e dedicar-se aos seus afazeres. Mas certa noite, num fim de semana como
muitos outros onde reservara algum tempo para si, para sua bebedeira, seu
cigarro de palha e seus pensamentos, algo diferente lhe ocorreu. As crianças já estavam adormecidas há muito e
sua esposa também. Passava da meia noite
e o homem, já ébrio, estava na varanda de sua casa bebendo de sua cachaça,
saboreando seu fumo e observando a escuridão na noite.
Seus pensamentos vagavam livremente
entre as questões cotidianas e outras tantas coisas reservadas aos filósofos
honorários. Mas então por um instante,
pareceu-lhe que um ruído estranho no celeiro se propagava. O homem apurou os ouvidos (aguçadíssimos) e
certificou-se de tal. Imediatamente levantou-se,
foi até a cozinha, pegou sua espingarda (que sempre guardava atrás da porta
para o caso de uma emergência) e foi até o celeiro verificar. Caminhou sorrateiramente. Ninguém jamais poderia tê-lo ouvido
caminhando em direção ao celeiro, tal era sua astúcia. E quanto mais o homem caminhava, mais
perspicaz era a certeza de que alguma coisa arranhava a madeira que servia como
parede de seu celeiro.
Muito lentamente o homem adentrou ao
celeiro e foi seguindo em direção ao ruído que a cada momento se tornava mais
evidente. E foi então que o homem
avistou num canto, arranhando a parede, uma figura estranha mas que não lhe era
totalmente desconhecida. Parecia
tratar-se de um pequeno animal, vermelho, sem pelos e nem penas, tinha uma
cauda em cuja ponta podia se identificar os traços tão característicos de
demônio. Tinha dois grandes cornos
negros protuberantes saindo de seu crânio e bracinhos e perninhas magricelas e
nervosos, riscando a parede com unhas negras. Duas pequenas asas brotavam-lhe
das costas, mas aparentemente ele não estava conseguindo fazer uso delas, pois
continuava arranhando a madeira como se estivesse tentando escapar.
O homem tão incrédulo e cético sentiu
todo o seu corpo arrepiar no mesmo momento e seu coração disparar de medo. Mas, ao mesmo tempo se encheu de coragem,
afinal; ele era um homem! Não podia
temer aquela criaturinha medonha. Por um
instante permaneceu petrificado sem saber o que fazer e continuou a observar a
agonia daquela criatura tão estranha. O
que, afinal de contas, estava tentando fazer aquele bicho? O homem hesitou e durante suas hesitação o
bicho virou-se para fita-lo e neste momento, desesperado o homem atirou. Mas errou o disparo. O pequeno demônio soltou um guincho
estridente e arreganhou seus dentes afiados para o homem que disparou
novamente. Mas o animal era rápido
demais e se esquivara rapidamente. O
homem começou a procurar outro cartucho no bolso para recarregar sua
espingarda, mas o pequeno demônio já havia desaparecido correndo para fora do
celeiro. Passara correndo ao lado do
homem antes mesmo que ele pudesse ter tomado qualquer outra atitude.
Depois de recarregar a arma o homem
ainda saiu correndo atrás dele mas não conseguiu encontrar nada além de um
cheiro de enxofre muito forte por todo o lugar.
Seus familiares logo vieram desesperados da casa procurando saber o que
é que havia acontecido e quando o homem lhes contou a verdade eles se
entreolharam pensando que ele havia enlouquecido ou que havia bebido demais.
Desde então o homem nunca mais foi o
mesmo. Passou a frequentar
constantemente as missas aos domingos de manhã e sempre que podia dava uma
passadinha na igreja para rezar. Contribuía
sempre que podia com a igreja e muitos diziam que ele havia feito uma promessa
para conseguir capturar o pequeno cramulhão.
Colocou no celeiro inúmeras arapucas e armadilhas estranhas que ele
inventava para tentar capturar o pequeno cramulhão. Mas tudo o que conseguia capturar eram ratos;
e isto muito raramente por que na maior parte das vezes as iscas desapareciam e
as armadilhas eram desarmadas sem capturar absolutamente nada. Isso irritava muito ao homem. Entretanto o que mais irritava o homem era
quando duvidavam da sua palavra. Aquilo
era para ele motivo de honra, não admitia absolutamente que o chamassem de
mentiroso e nem, tampouco de bêbado. Se
alguém queria arranjar desavença com ele era dizer que os arranhões no celeiro
haviam sido feitos por uma raposa ou algum outro animalzinho inofensivo. Aquilo era para ele motivo de agressão e o
homem logo ficava vermelho de fúria. E
por acaso ele era homem de fantasias e sonhos por causa de bebedeiras? Resolvera que capturaria o tal cramulhão para
ter a satisfação de esfregar na cara de todas as pessoas que um dia ousaram
dizer que ele era mentiroso, que estava ficando maluco, que era um bêbado,
enfim. Aos poucos aquilo foi se tornando
uma obsessão na vida daquele homem e, depois de algum tempo ela adquirira o
hábito de ficar até tarde na varanda de sua casa esperando por algum sinal da
criatura. Mantinha a espingarda ao lado
da cadeira e uma gaiola pronta para prender o pequeno diabo. Parara de beber para que não o acusassem de
ser bebum e mantinha os ouvidos atentos a qualquer ruído estranho que pudesse
significar a presença da criaturinha.
Seus parentes e amigos já estavam ficando preocupados com o homem que,
aos poucos, ia se tornando desleixado de sua aparência e esquecido de seus
afazeres. Tinha deixado crescer a barba
e todos que o viam diziam que ele estava com uma aparência de doente. O homem mantinha-se fixo em seu objetivo,
capturar o pequeno cramulhão. Havia
noites em que saia caminhando por sua propriedade com seus passos silenciosos e
a espingarda em riste pronta para atingir o animalzinho (se é que pode se
chama-lo assim). Depois voltava para a
casa e ia deitar-se insatisfeito.
Conforme o tempo ia passando o homem, a cada noite ia se deitar mais
tarde e quando sua mulher, despertada por ele de um sono profundo reclamava ele
fica furioso. Ela não compreendia,
ninguém compreendia. E o homem já não
conseguia dormir sossegado, não conseguia conciliar o sono. Então chegou a passar a noite toda ali na
cadeira por duas vezes e nada.
Continuava a frequentar as missas aos domingos mas estava cada vez mais
arredio com as pessoas. Todos estavam
cada vez mais preocupados com ele e já se cogitava a possibilidade até mesmo de
uma intervenção psiquiátrica. Tentaram
pedir para o padre falar com ele, mas isto também não dera resultado.
Até que, uma manhã, logo depois de
tomar seu café e sentar-se na cadeira o homem começou a cochilar quase sem
querer. Oscilava entre o dormir e o
despertar com o pescoço pendendo para lá e para cá. De cansaço o homem caiu no sono e de repente
vislumbrou bem à sua frente o animalzinho que surgia batendo suas asinhas
vermelhas e asquerosas como se fosse um colibri do inferno. Então o pequeno cramulhão voou bem diante do
homem sobre a cadeira e pairou no ar rindo para ele com um ar de deboche. Neste mesmo momento o homem de repente
despertou de seu sonho e avistou uma figura avermelhada passar correndo e
desaparecer no meio do mato. O homem
despertou num salto repentino da cadeira e deu logo um tiro na direção onde o
animalzinho havia corrido. Teve a impressão
de ouvir um guincho de dor e achou que finalmente tinha acertado a
criatura. Levantou-se de chofre e saiu
correndo para o mato onde o bicho parecia ter desaparecido, mas antes de se
enfiar pelo mato ainda disparou novamente e ouviu um gemido. Recarregou a espingarda rapidamente com as
mãos trêmulas e foi se embrenhar no meio do mato na certeza de que havia
finalmente acertado o diabinho. Mas
quando adentrou o mato e caminhou alguns metros caiu de joelhos ao descobrir
que tinha atingido e matado um pobre menino que vivia ali pelas redondezas.
Logo começaram a aparecer pessoas que
tinham ouvido o disparo e o homem desolado não sabia o que dizer. Depois de pouco tempo a polícia foi
chamada. Muitas pessoas de fazendas
vizinhas, sabendo da notícia, também vieram e uma pequena multidão se formou
para querer linchar o homem. Por sorte a
polícia da cidade meteu o homem dentro da viatura que era um fusquinha 67 bem
conservado e se mandou com ele para a delegacia da cidade. O caso foi parar na TV e todos na cidade se
lamentavam pelo pobre menino e pelo homem que havia perdido o juízo.
Em sua cela, desolado, o homem ainda
tentava entender tudo o que se passara consigo.
Logo a noite caiu e o homem não conseguia dormir. Enquanto os outros detentos roncavam e
dormiam ao seu lado o homem mantinha-se de cabeça baixa com os olhos fixos no
chão. Perguntava-se continuamente, por
que ele afinal de contas? Então, de repente
começou a ouvir um ruído estranho, parecia-lhe um grunhido rouco. Era ele, o homem reconhecera imediatamente o
ruído. De chofre o homem levantou-se e
se aproximou das grades. E foi então que
ele surgiu mais uma vez. Veio pairando no ar com as asinhas nervosas de um
colibri nefasto e um sorriso de escárnio
no rosto avermelhado e mal formado.
Tranquilamente ele se aproximou da cela do homem e sorriu-lhe com seus
dentinhos afiados asquerosos. Era um
sorriso de vitória sobre o pobre homem. Depois
seguiu seu caminhando pairando pelo ar e desaparecendo entre as sombras num
canto na parede. Tudo o que ficou foi um
cheiro forte de enxofre e o homem ali parado tentando entender para onde é que
havia ido o animalzinho.
Morpheus