Foi numa noite friorenta de 97. Talvez maio ou junho; não me recordo
exatamente o mês, mas me recordo muito bem que eu havia decidido matar aula
junto com uns caras e sair em busca de fumo.
Era uma época obscura em que eu tinha mais prazer em caminhar sozinho à
noite pelas ruas do que viver entre as pessoas à luz do dia. Nessa época eu andava com uns camaradas que
usavam roupas largas e ouviam rap. Mas é
claro que eu tinha o meu próprio estilo, curtia meu rock’n roll antigão e usava
uma jaqueta surrada jeans para cobrir o meu corpo magricelo, fumava como um
desgraçado, era cabeludo, revoltado e estava lendo “AS FLORES DO MAL” por isso
naquela mesma noite eu carregava o livro comigo quando atravessamos o morro, a
rodovia e entramos no bairro para “descolar” um baseado. “Trombamos” uns malucos já conhecidos,
fizemos uma “intera *” e um dos nossos camaradas logo foi fazer o “corre” montado
em sua bike de bicicross. Algum tempo
depois ele surgia com a nossa maconha tão preciosa e finalmente nos púnhamos à
tarefa de “bolar**” um baseadão.
É comum e todos sabem disto, relacionar o uso de
entorpecentes a atitudes criminosas mas, para mim, o uso de entorpecentes (principalmente
naquela época) sempre foi relacionado a outras coisas, algo mais...místico
talvez. Eu gostava de fumar para
escrever poesia. Gostava de fumar para
ter sensações diferentes, para me desligar, entrar em contato mais íntimo com a
minha mente e com os meus devaneios, encontrar um outro estado de consciência. Enfim, eu usava para ficar muito louco mesmo e
devo admitir que gostava muito disto. O
fato é que o uso de entorpecentes, para mim, estava muito mais relacionado ao
tão conhecido bordão “sexo, drogas e rock’n roll” do que a criminalidade e
todos os problemas sociais das periferias.
Ser saudosista e quase desconectado das coisas ao redor era uma novidade
que não chegava a ser conflitante mas talvez apenas exótica do ponto de vista
da maioria das pessoas que se lixavam para as coisas das quais eu me
interessava. Coisas como literatura e
filosofia, por exemplo. De qualquer
modo, nunca me preocupava com a questão “criminal” e tampouco me perturbava com
o ato ilícito em si. Mas os outros caras
com os quais eu costumava partilhar a erva tinham uma visão absolutamente
diferente da maconha. Para eles fumar um
baseado era ser um fora da lei e eu pouco me importava com isso. Mané era um desses caras. Mané não estudava com a gente, mas vivia na
periferia mais ou menos próxima da escola onde estudávamos. Era irmão mais velho de um dos nossos
“trutas” e, pelo pouco que eu soube vivia também envolvido em outras atividades
criminosas como roubos, furtos, enfim. O
cara era todo “serião”, invocado.
Depois de termos fumado o primeiro baseado resolvemos
buscar um vinho para completar a “brisa”.
Juntaram uns trocados e me escalaram para ir buscar a garrafa já que eu já
não tinha mais nenhum puto no bolso. Eu
fui e quando voltei Mané já estava trocando umas ideias com os caras. Cumprimentei o mano, abri a garrafa e fui
passando para os outros manos que estavam na “banca”. Eu já estava muito louco. Estava “bruxo”, como alguns costumavam
dizer. Trocamos altas ideias. Mas num dado momento Mané resolveu começar a
falar. De repente parecia revoltado com
alguma coisa, parecia até que estava revoltado conosco. Seu semblante tomou uma expressão grave e o
cara começou a falar como se estivesse bravo:
- Cês; safra nova que tão tudo começano agora num sabe
nada de nada. Cês ainda tem muito que
aprende – e então começou a divagar – eu lembro mano; quando o Tito ainda usava
fralda eu já colava no campinho ali embaixo prá faze avião pos malaco. Lembra do Túlio Porcão? Lembra do Aritana, Tito? Lembra do Pendengo? Lembra
do Jocão? – e Tito confirmava – Os malaco me dava um tijolo prá levar muquiado na
mochila lá prá vila Irineu. Isso aí eu
tinha o que? Nove? Dez anos se pah! Nem
esquentava nem nada, ia no rolê loco memo.
Na escola então, nóis colocava
uns “riscão***” em cima do corrimão da escada e saia alucinado no
movimento. Ché, quantas veiz entrei
muito loco na crasse! Pa jogá ali no
campinho então, ché; quantas veiz num jogava muito loco só dano canelada!
Mas de repente Mané parecia hesitante e calara-se. E todos haviam se calado também, apenas
bebíamos e fumávamos. A noite seguia, a
vida seguia, as coisas todas estavam acontecendo em todos os arredores da
cidade e nós estávamos todos ali parados na esquina. Calados.
Atentos e respeitosamente ouvindo tudo o que aquele sujeito de repente
queria compartilhar conosco. Então,
percebi que os músculos da mandíbula de Mané se contraiam com força e era como
se ele estivesse mordendo os próprios dentes.
Ele nos encarava firmemente quando falava, mas agora parecia hesitar
realmente, parecia pensar no que ia dizer e depois de alguns instantes de
silêncio ele começou a falar novamente:
- A vida é assim memo rapaziada. Hoje cê tá aqui, amanhã cê num tá. Cê nunca sabe. Eu matei um dia – e remordia-se – matei memo! E eu to aqui agora trocando uma ideia cum
vocêis. O malaco tá lá...debaxo de sete
palmo de terra. A vida é essa. Eu falo pro ceis. Era eu ou ele no baguio, então é o seguinte
parcero; apertei memo! Remorso
mano? Nem sei, quem sabe? Cada um é cada um, cada um na sua
caminhada. Eu pensei, penso. Tem umas coisa que é foda.
E calara-se durante alguns segundos olhando para o chão
para logo em seguida recomeçar:
- É por isso que eu falo pro ceis, ande pelo certo, nunca
pelo errado. Sumemo. Essa que é a moral do baguio, morô? Corra pelo certo por que a guerra mano, a
guerra é a guerra. O que vira memo é a
paiz. Que nem ocê aí – e apontou a
garrafa que segurava na minha direção – ocê é muleque ainda, mais vive na paiz
cum tudo mundo, cheio dos terécotéco e dos badulaque aí no pescoço e numseioquê;
mas cê pode vê que tudo os mano aqui tá na camaradagê cocê, certo. Eu falo pro cê, cê tá ligado; é paiz mano, paiz! Por que a guerra malandro...a guerra é a
morte mano! Antes a mãe dele chora que a
minha, num é não? Tô certo ou to errado?
...Qué sabe mano, foda-se! Falo pro ceis aí que eu vô saí fora rapaziada – e
saiu caminhando meio cambaleante para ir embora para a casa dele.
Nós continuamos ali por mais algum tempo, depois fomos
para o bar que ficava na rua detrás.
Jogamos umas partidas de bilhar e depois eu voltei para o bairro onde eu
morava. Fiquei dando umas voltas inúteis
pelas ruas lúgubres e esperando que a luz de casa se apagasse e eu tivesse a
certeza de que meus pais já tinham ido para a cama para que então eu pudesse
chegar em casa com os olhos em brasa e o bafo de cachaça sem que a minha mãe
pudesse perceber.
Alguns meses depois disso ficamos sabendo da morte de
Mané. O cara havia sofrido um
traumatismo craniano num trágico acidente de moto. Morreu jovem, devia ter na época uns trinta
anos ou menos. Mas nunca me esqueci das
coisas que ouvi naquela noite. O remorso
daquele sujeito muito provavelmente o acompanhou até o último dia de sua
vida. O fato é que Mané também era uma
vítima, uma vítima talvez de uma cultura violenta e selvagem, uma vítima de um
sistema, mas talvez uma vítima de si mesmo...eu não sei...quem sabe? E aquele
papo, aquele desabafo do pobre coitado do Mané que queria demonstrar coragem
ficou entre algumas das coisas que eu ouvi, vivi e que eu carregarei comigo por
toda a vida.
Eu
nunca soube o nome correto de Mané, mas espero que ele esteja num bom lugar e
que descanse em paz.
* intera : rateio
** bolar: preparar o cigarro de maconha
*** riscão: carreira de pó de cocaína
Morpheus