Junho de 1999
Acordei
assustado, parecia que tinha ouvido algum ruído estranho lá fora. Tinha finalmente conseguido cochilar um pouco
depois de nem sei quanto tempo tentando apenas dormir um pouco. Fazia frio.
Levantei rapidamente da cama. Fui
até cozinha, parei, olhei ao redor toda a escuridão do cômodo sem nem saber ao
certo por que é que eu estava fazendo aquilo.
Minhas veias estavam pulsantes e quentes, eu não iria suportar mais uma
noite. Suportaria?
Aproximei-me
da pia para pegar um copo d’água e quando olhei pela janela dois olhos amarelos
e felinos me encaravam e no mesmo instante todos os pelos do meu corpo se
arrepiaram e eu fiquei paralisado de terror.
A figura estranha do lado de fora da janela saiu andando lentamente e se
afastou na direção do quintal enquanto eu ainda tentava assimilar aquilo em
minha mente. Eram dois olhos amarelos e
uma figura escura, parecia um animal.
Chacoalhei a cabeça, neguei. Era
apenas uma alucinação. Não era
real. Mas o meu medo era. Ainda era.
Voltei ao
banheiro e lavei o rosto, enfiei a cabeça embaixo da torneira. Eu me sentia agitado. Acabara de ter uma alucinação, minhas veias
estavam em brasa, sentia vontade de arrancar os cabelos, precisa de uma...
Não. Eu não precisava de nada, precisava apenas
ser forte, precisava apenas continuar sendo eu mesmo. Teria de enfrentar a noite. Lavei o rosto novamente, lavei o rosto umas
quinhentas vezes, fiquei com a cabeça debaixo da torneira até começar a tremer
de frio e me sentir um pouco mais em paz.
Depois fiquei parado em frente ao espelho nem sei quanto tempo, a água escorrendo
de meus cabelos e pingando em meu rosto macilento. Pensava em fumar um cigarro, ainda não tinha
me privado do cigarro. Mas então uma
lata de tinta vazia caia lá no quintal com seu ruído tão característico e
depois uns ruídos estranhos que eu não pude perceber direito. Seria a criatura? Bobagem, eu pensei. Mas comecei a me lembrar daquela imagem
estranha. Meu cérebro havia me pregado
uma peça. E eu precisava enfrentar isso,
precisava ir lá fora e checar o que é que estava acontecendo. Precisava enfrentar os meus medos, é isto o que
um homem sensato faz. Teria sido o
vento? Pensando bem eu não precisava
checar nada porque não havia nada lá fora.
Busquei um cigarro com toda a sutileza do mundo para não acordar ninguém
e fiquei fumando em silêncio sentado sobre o vaso. Não conseguia conter a tremedeira e por um instante
pensei que, na verdade, estava tendo uma atitude suspeita fumando sozinho no
banheiro com a porta fechada. Alguém
poderia desconfiar que eu estivesse dando
uma paulada*. Saí e fui fumar na
sala. Sentei-me no sofá, mas não
encontrava o cinzeiro. Porra! De repente fiquei muito nervoso por que eu
não achava a merda do cinzeiro e a toda hora eu tinha que me levantar e jogar
as cinzas do cigarro no lixo. O cigarro
não estava adiantando, eu não estava me sentindo mais calmo. Quando me dei conta de mim estava procurando
o cinzeiro debaixo do armário da cozinha, mas por que diabos eu estava fazendo
aquilo? Era absurdo! Ninguém guarda um cinzeiro debaixo do armário
da cozinha. Na verdade eu estava
procurando uma pedra. Sim! Eu estava procurando uma pedra, um pega**devia ter caído por ali e eu
já tinha o careta, as cinzas, tudo. A
todo o momento eu limpava a boca, eu estava suando, eu estava perdendo o
controle. Apaguei o cigarro e me sentei
no sofá escondendo o rosto entre os joelhos.
Escutei uns ruídos lá fora. Tinha
certeza que era uma alucinação, só podia ser, era uma alucinação voltando para
querer tirar a minha paz. Tentando tirar
a minha paz? Alucinações não têm vontade
própria. Talvez eu devesse tentar dormir
novamente. Mas não. Eu não ia conseguir, estava excitado demais,
estava nervoso demais, o que eu deveria fazer era distrair a minha mente. Sim!
Busquei os meus fones de ouvido, meti um Black Sabbath no último volume
e deixei o som invadir a minha mente.
Fiquei ali chacoalhando a cabeça de olhos fechados até cansar. Quando cansei, fiquei de repente como que
paralisado olhando para a porta. O som
estourando nos meus ouvidos, as guitarras fodendo com o mundo inteiro e então
de repente tive a impressão de um vulto passando pelo corredor. Foi tão assustador que caí do sofá e derrubei
o walkman nem sei onde. Me encostei na
parede, tentei respirar fundo, eu precisava de um cigarro, mas o cigarro estava
no banheiro e para chegar até o banheiro eu precisava passar pelo corredor onde
eu tinha visto aquilo. Mas o que era
aquilo? Um vulto? Minha avó dizia que algumas pessoas que têm
problemas mentais são acossadas por espíritos sem jamais se dar conta
disto. Por um instante pensei que isso ocorria comigo
e comecei a coçar a cabeça desesperadamente.
Eu tinha vontade de chorar, meus nervos estavam em frangalhos, mas eu
sabia, lá no fundo eu sabia que eu precisava ser forte. Ser racional.
Porra! Visão periférica,
porra! Caralho! Tinha ouvido falar em algum documentário
sobre isto, visão periférica. É claro,
havia sido apenas uma impressão e eu estava nervoso demais. Mas por via das dúvidas me ajoelhei bem no
meio da sala e rezei. Ser miserável eu
sou, somente recorro a Deus quando estou me cagando de medo. Mas todos os homens não são assim?
Já me sentindo
mais calmo me levantei e fui até o banheiro.
Peguei um cigarro e acendi. Só me
restavam mais dois no maço. Eu estava
parando. Eu iria parar um dia; eu iria
parar, mas agora eu precisava de um cigarro.
Precisava de mais um cigarro para enfrentar a noite, mas aquele acabou
rapidamente e quase sem perceber eu acendi mais um e continuei ali pensando em
Deus e pensando que eu poderia enfrentar a noite, aquilo tudo, eu precisava
continuar tentando. E o outro cigarro
também havia acabado. Resolvei tentar
dormir novamente. Fui para o quarto e me
deitei. Fechei os olhos. Minha mente dava voltas, estava inquieta,
minha mente sempre foi inquieta, mas agora parecia estar pior. Era a abstinência, só podia ser. Talvez eu devesse tomar um calmante. Mas não seria pior? Eu me revirava e me mexia a todo o momento
sem conseguir conciliar o sono. Virei de
barriga para cima e fiquei de olhos abertos olhando para o teto. Que Deus me ajudasse a dormir. Como é que estaria o trailer agora? Todos deveriam estar por lá, mas se eu fosse
até lá e tomasse uma cerveja apenas seria muito mais fácil voltar e dormir
depois e... Não. Eu não tomaria uma cerveja apenas, eu sei. E se eu fumasse um baseado? Eu iria me acalmar, eu sei que iria, mas não
podia, não devia, uma coisa sempre leva a outra e eu...eu estava decidido a
mudar a minha vida. Devia pensar em
outras coisas. Sentei-me na cama, encostei-me
à parede gelada.
Ouvi um ruído
no quintal. Eram passos, eu tinha
certeza, eram passos. Levantei da cama
bem devagar arrepiado de medo. Era a
criatura, só podia ser. Era o diabo
tentando me alcançar de algum jeito.
Quando me dei conta estava agachado ao lado da cama tentando escutar
alguma coisa mas não havia nada para se escutar. Não havia ninguém lá fora, era tudo coisa da
minha cabeça. Estava paranoico. Eu precisava de um cigarro. Mas só tinha mais um e se eu fumasse teria
que passar o resto da noite sem fumar.
Eu não suportaria, teria que aguentar mais um pouco. Deveria deixar aquele cigarro para
depois. Mas talvez eu ainda tivesse um
toco de baseado escondido embaixo da cama, eu sempre deixava um toco para o
caso de necessidade e este era definitivamente um caso de necessidade. Então me pus a procurar, levantei as
cobertas, levantei o colchão, procurei por tudo e não encontrei nada. Eu estava ficando nervoso, estava com aquelas
tremedeiras terríveis, eu precisava de um trago, eu precisava de alguma coisa,
meu Deus! Eu precisava de um trago. Estava arrancando os cabelos, mas eu tinha
que ser forte, a todo o momento eu tinha em mente que eu tinha que ser forte,
eu tinha que vencer o mundo, eu tinha que vencer a mim mesmo. Eu tinha que me tornar senhor da minha
vontade. E o quarto estava todo
bagunçado. Meus pés estavam
gelados. Que horas seriam? Olhar o relógio seria pior. Eu estava limpando a boca a todo momento,
estava com aquela mania novamente, era um efeito colateral eu acho. Efeito da abstinência.
Pensei em ler um livro. Me lembrei do desespero de Kerouac em Big
Sur. Fui procurar o livro na estante,
mas eu não achava. Eu não achava. Eu não achava. EU NÃO ACHAVA. ONDE É QUE ESTAVA A PORRA DO LIVRO? CARALHO!
LIVRO FILHO DA PUTA! Não estava
ali. Não estava ali. Onde eu tinha guardado? Eu tinha vendido? Tinha emprestado?
Era melhor
fumar um cigarro, eu estava muito nervoso.
Mas eu só tinha um cigarro e se eu fumasse teria que enfrentar toda a
noite sem mais nenhum cigarro. Eu
conseguiria?
Eu queria ir
até a cozinha tomar um copo d’água, mas talvez a criatura estivesse espreitando
na janela, esperando para me encarar com aqueles olhos amarelos e aquelas
elipses negras bem no centro de cada um deles.
Talvez fosse o diabo mesmo tentando me assustar. Tentando me fazer ter um ataque cardíaco para
sair me arrastando pelos pés e me levar para o inferno, mas eu não iria
deixar. Eu havia decidido mudar a minha
vida. Eu estava me afastando de algumas
pessoas. Eu iria arranjar um emprego, eu
iria começar a trabalhar, eu precisava arranjar uma namorada, eu tinha que
tentar, eu tinha que continuar tentando.
Eu não ia beber mais. Não ia
fumar mais pedra, mais nada. Eu tinha
que preencher a minha vida com deveres, eu tinha que fazer alguma coisa, eu
tinha que dormir. Mas eu não conseguia
dormir. Eu estava desconfiado que havia
alguma coisa lá fora, mas eu sabia que era tudo bobagem, no fundo eu sabia que
era tudo bobagem, eu sabia.
Mas era
difícil. Era tudo muito difícil.
Acendi meu
último cigarro. Não suportava mais. Fumei.
Fumei o mais tranquilamente que pude, mas agora eu não tinha mais
cigarros.
A noite era um
oceano. Mas durante algum tempo eu me
sentia mais calmo. E eu pensei que
talvez fosse o momento de ir até lá fora e encarar a criatura. Talvez fosse o momento de ir lá fora e olhar
para um quintal vazio, por que quando eu estava nas ruas fumando pedra eu não
tinha tanto medo assim. Por que é que eu
estava sentindo tanto medo agora? Que
paranoia era aquela? Eu nem mesmo havia
me drogado. Eu estava careta, só tinha fumado
uns cigarros, não tinha bebido nada. Era
a abstinência, eu sabia. Lá no fundo eu
sabia. Eu não era como os outros nóias*** e era isto que iria me
salvar. Eu tinha informações, eu tinha
fé em Deus, eu tinha força de vontade, eu acreditava em mim, eu sabia dos meus
propósitos todos e havia me excedido, é claro, mas tinha que ser forte agora.
Decidi dar uma
espiada no quintal, me aproximei da porta da cozinha com cautela e espiei pelo
buraco da fechadura. De repente senti
aquele calafrio no corpo todo novamente, aquele medo irracional, aquele pavor
louco! Lá estava a criatura! Sentada no muro e se balançando para lá e
para cá como se fosse uma criança brincando comigo. E ela parecia saber que eu a espreitava, mas
por que se balançava daquele jeito?
Respirei fundo, tentando me acalmar.
Olhei novamente. Parecia ser
apenas um cara agora. Um cara ali
sentado, o filho da puta! Não seria uma
criatura então? Mas é claro que não,
criaturas não existem. Era um cara
sentado no muro. De onde tinha vindo
aquele filho da puta? O que é que ele
estava fazendo sentado no muro da minha casa e se balançando para lá e para cá
como um idiota? Resolvi acender a luz do
quintal, mas hesitei no mesmo instante.
Por quê? Não sabia muito
bem. Tudo era periclitante, silencioso,
misterioso, confuso. Havia mesmo uma
pessoa ali? Não seria apenas mais uma
alucinação minha? Agachei junto da
porta. Olhei novamente pelo buraco da
fechadura e lá estava ele. Balançava o
tronco para a esquerda e para a direita, para a esquerda e para a direita...a
cabeça estava oculta nas sombras da árvore da rua, coisa estranha! Nunca tinha pensado em alguém se mexendo
daquela maneira. E se eu acendesse a luz
talvez ele fugisse correndo pela rua ou; (de repente um branco na mente,
hesitação, devaneio) ou talvez ele...talvez estivesse armado esperando para me
matar! Mas por quê? Não.
Quem é que iria querer me matar?
Talvez estivesse esperando para roubar a casa, talvez fosse isso... Olhei novamente pelo buraco da fechadura e lá
estava ele, estava parado agora.
Parecia-me muito estranho aquilo tudo e eu não sei quanto tempo fiquei
ali naquela posição observando pelo buraco da fechadura, com os pés congelando
no chão, talvez uns vinte ou trinta minutos, mas aos poucos comecei a chegar
numa conclusão; não havia ninguém ali.
Aos poucos fui percebendo que o que havia ali, na verdade era apenas uma
camiseta colocada no varal de forma a dar a impressão em minha mente doentia de
que era um cara sentado no muro! Sim! Agora eu percebia, era apenas uma camiseta. Por quanto tempo fiquei imaginando que
houvesse alguém ali? Acendi a luz e tudo
se esclareceu, era mesmo apenas uma camiseta pendurada no varal ali fora. Que coisa!
Voltei
para a sala, liguei a tv. Filmes antigos, programas religiosos, o que
fazer? Tomei um copo de leite gelado,
deitei no sofá, estava cansado e minhas mãos estavam coçando. De repente estavam coçando demais. Eu coçava, coçava e elas coçavam ainda mais,
estavam vermelhas e eu as esfregava uma na outra o tempo todo
nervosamente. Fui ao banheiro e as
enfiei debaixo da torneira. Melhorou.
Parei na
cozinha, hesitei coçando o queixo. De
repente por entre as vidraças da sala de estar os primeiros raios de sol do
novo dia começavam a surgir. Outro dia
começava e eu havia conseguido, eu havia sobrevivido mais uma noite.
Morpheus
*gíria que
designa o ato de fumar uma pedra de crack.
**termo
utilizado pelos viciados em crack para se referir aos pedaços de crack
utilizados a cada vez no cachimbo. Cada
pedaço de pedra fumado é “um pega”
***pessoas
viciadas em crack