domingo, 20 de outubro de 2013
A PRAÇA
uma puta solerte a míngua
um cão;
um homem feio e desajeitadoo à porta do banheiro público
procurando algo nos bolsos rotos
mendigos
a igreja imponente com seus três séculos
e um pouco mais sob o sol franzino e o vento preguiçoso
da manhã de sábado
transeuntes
a efígie de pedra sempre austera
o tempo
policiais
a banca de jornal
um efebo que pede informações aos desconhecidos;
bancos vazios
a garota que sempre me sorri seu sorriso núbil pós adolescente
as lojas
um guarda-chuvas quebrado esquecido no cesto de lixo
e eu, meu café; a vida por um instante aprisionada
nas letras
Morpheus
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
DESENCONTRO
Procurei o poema no silêncio que a noite me entregou
e na manhã do dia seguinte...
não o encontrei
Procurei nos lugares onde o esquecimento é incolor
e as lembranças são de barro
mas não o achei
Saí para tomar um café
e procurei nos olhares
e no timbre das vozes
Perscrutei esquinas vulgares
entre diálogos atrozes
mas não encontrei estrofe, verso ou rima
Pensei mesmo
estar vivendo num mouco mundo de pantomima
por que nada encontrei
Então ao descaso me entreguei
por não achar resquício de poema
ou qualquer que fosse o estratagema
que conotasse
ou pudesse ser esboço
que me indicasse
a expressão de um colosso
literário que pudesse vir a ser um poema
Mas acho que me iludi demais...
Exigi demais dessa procura
e extrapolei a redundância que o permeia
Certamente me enganei, era para ser somente
poesia
lançada pela boca ao vento que me rodeia
e morrer nos ouvidos atentos que tristemente
perceberam que minha busca foi em vão,
pois não havia um poema então
Morpheus
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
RELATO DE MANÉ
Foi numa noite friorenta de 97. Talvez maio ou junho; não me recordo
exatamente o mês, mas me recordo muito bem que eu havia decidido matar aula
junto com uns caras e sair em busca de fumo.
Era uma época obscura em que eu tinha mais prazer em caminhar sozinho à
noite pelas ruas do que viver entre as pessoas à luz do dia. Nessa época eu andava com uns camaradas que
usavam roupas largas e ouviam rap. Mas é
claro que eu tinha o meu próprio estilo, curtia meu rock’n roll antigão e usava
uma jaqueta surrada jeans para cobrir o meu corpo magricelo, fumava como um
desgraçado, era cabeludo, revoltado e estava lendo “AS FLORES DO MAL” por isso
naquela mesma noite eu carregava o livro comigo quando atravessamos o morro, a
rodovia e entramos no bairro para “descolar” um baseado. “Trombamos” uns malucos já conhecidos,
fizemos uma “intera *” e um dos nossos camaradas logo foi fazer o “corre” montado
em sua bike de bicicross. Algum tempo
depois ele surgia com a nossa maconha tão preciosa e finalmente nos púnhamos à
tarefa de “bolar**” um baseadão.
É comum e todos sabem disto, relacionar o uso de
entorpecentes a atitudes criminosas mas, para mim, o uso de entorpecentes (principalmente
naquela época) sempre foi relacionado a outras coisas, algo mais...místico
talvez. Eu gostava de fumar para
escrever poesia. Gostava de fumar para
ter sensações diferentes, para me desligar, entrar em contato mais íntimo com a
minha mente e com os meus devaneios, encontrar um outro estado de consciência. Enfim, eu usava para ficar muito louco mesmo e
devo admitir que gostava muito disto. O
fato é que o uso de entorpecentes, para mim, estava muito mais relacionado ao
tão conhecido bordão “sexo, drogas e rock’n roll” do que a criminalidade e
todos os problemas sociais das periferias.
Ser saudosista e quase desconectado das coisas ao redor era uma novidade
que não chegava a ser conflitante mas talvez apenas exótica do ponto de vista
da maioria das pessoas que se lixavam para as coisas das quais eu me
interessava. Coisas como literatura e
filosofia, por exemplo. De qualquer
modo, nunca me preocupava com a questão “criminal” e tampouco me perturbava com
o ato ilícito em si. Mas os outros caras
com os quais eu costumava partilhar a erva tinham uma visão absolutamente
diferente da maconha. Para eles fumar um
baseado era ser um fora da lei e eu pouco me importava com isso. Mané era um desses caras. Mané não estudava com a gente, mas vivia na
periferia mais ou menos próxima da escola onde estudávamos. Era irmão mais velho de um dos nossos
“trutas” e, pelo pouco que eu soube vivia também envolvido em outras atividades
criminosas como roubos, furtos, enfim. O
cara era todo “serião”, invocado.
Depois de termos fumado o primeiro baseado resolvemos
buscar um vinho para completar a “brisa”.
Juntaram uns trocados e me escalaram para ir buscar a garrafa já que eu já
não tinha mais nenhum puto no bolso. Eu
fui e quando voltei Mané já estava trocando umas ideias com os caras. Cumprimentei o mano, abri a garrafa e fui
passando para os outros manos que estavam na “banca”. Eu já estava muito louco. Estava “bruxo”, como alguns costumavam
dizer. Trocamos altas ideias. Mas num dado momento Mané resolveu começar a
falar. De repente parecia revoltado com
alguma coisa, parecia até que estava revoltado conosco. Seu semblante tomou uma expressão grave e o
cara começou a falar como se estivesse bravo:
- Cês; safra nova que tão tudo começano agora num sabe
nada de nada. Cês ainda tem muito que
aprende – e então começou a divagar – eu lembro mano; quando o Tito ainda usava
fralda eu já colava no campinho ali embaixo prá faze avião pos malaco. Lembra do Túlio Porcão? Lembra do Aritana, Tito? Lembra do Pendengo? Lembra
do Jocão? – e Tito confirmava – Os malaco me dava um tijolo prá levar muquiado na
mochila lá prá vila Irineu. Isso aí eu
tinha o que? Nove? Dez anos se pah! Nem
esquentava nem nada, ia no rolê loco memo.
Na escola então, nóis colocava
uns “riscão***” em cima do corrimão da escada e saia alucinado no
movimento. Ché, quantas veiz entrei
muito loco na crasse! Pa jogá ali no
campinho então, ché; quantas veiz num jogava muito loco só dano canelada!
Mas de repente Mané parecia hesitante e calara-se. E todos haviam se calado também, apenas
bebíamos e fumávamos. A noite seguia, a
vida seguia, as coisas todas estavam acontecendo em todos os arredores da
cidade e nós estávamos todos ali parados na esquina. Calados.
Atentos e respeitosamente ouvindo tudo o que aquele sujeito de repente
queria compartilhar conosco. Então,
percebi que os músculos da mandíbula de Mané se contraiam com força e era como
se ele estivesse mordendo os próprios dentes.
Ele nos encarava firmemente quando falava, mas agora parecia hesitar
realmente, parecia pensar no que ia dizer e depois de alguns instantes de
silêncio ele começou a falar novamente:
- A vida é assim memo rapaziada. Hoje cê tá aqui, amanhã cê num tá. Cê nunca sabe. Eu matei um dia – e remordia-se – matei memo! E eu to aqui agora trocando uma ideia cum
vocêis. O malaco tá lá...debaxo de sete
palmo de terra. A vida é essa. Eu falo pro ceis. Era eu ou ele no baguio, então é o seguinte
parcero; apertei memo! Remorso
mano? Nem sei, quem sabe? Cada um é cada um, cada um na sua
caminhada. Eu pensei, penso. Tem umas coisa que é foda.
E calara-se durante alguns segundos olhando para o chão
para logo em seguida recomeçar:
- É por isso que eu falo pro ceis, ande pelo certo, nunca
pelo errado. Sumemo. Essa que é a moral do baguio, morô? Corra pelo certo por que a guerra mano, a
guerra é a guerra. O que vira memo é a
paiz. Que nem ocê aí – e apontou a
garrafa que segurava na minha direção – ocê é muleque ainda, mais vive na paiz
cum tudo mundo, cheio dos terécotéco e dos badulaque aí no pescoço e numseioquê;
mas cê pode vê que tudo os mano aqui tá na camaradagê cocê, certo. Eu falo pro cê, cê tá ligado; é paiz mano, paiz! Por que a guerra malandro...a guerra é a
morte mano! Antes a mãe dele chora que a
minha, num é não? Tô certo ou to errado?
...Qué sabe mano, foda-se! Falo pro ceis aí que eu vô saí fora rapaziada – e
saiu caminhando meio cambaleante para ir embora para a casa dele.
Nós continuamos ali por mais algum tempo, depois fomos
para o bar que ficava na rua detrás.
Jogamos umas partidas de bilhar e depois eu voltei para o bairro onde eu
morava. Fiquei dando umas voltas inúteis
pelas ruas lúgubres e esperando que a luz de casa se apagasse e eu tivesse a
certeza de que meus pais já tinham ido para a cama para que então eu pudesse
chegar em casa com os olhos em brasa e o bafo de cachaça sem que a minha mãe
pudesse perceber.
Alguns meses depois disso ficamos sabendo da morte de
Mané. O cara havia sofrido um
traumatismo craniano num trágico acidente de moto. Morreu jovem, devia ter na época uns trinta
anos ou menos. Mas nunca me esqueci das
coisas que ouvi naquela noite. O remorso
daquele sujeito muito provavelmente o acompanhou até o último dia de sua
vida. O fato é que Mané também era uma
vítima, uma vítima talvez de uma cultura violenta e selvagem, uma vítima de um
sistema, mas talvez uma vítima de si mesmo...eu não sei...quem sabe? E aquele
papo, aquele desabafo do pobre coitado do Mané que queria demonstrar coragem
ficou entre algumas das coisas que eu ouvi, vivi e que eu carregarei comigo por
toda a vida.
Eu
nunca soube o nome correto de Mané, mas espero que ele esteja num bom lugar e
que descanse em paz.
* intera : rateio
** bolar: preparar o cigarro de maconha
*** riscão: carreira de pó de cocaína
Morpheus
quinta-feira, 20 de junho de 2013
PROTESTO NO TEXTO - TEXTO NO PROTESTO
PRESTA NO QUE
PROTESTA E ATESTA O CONTEXTO
O TEXTO É ISTO NO
NEXO DA FESTA QUE CONTESTA
O QUE OUTRORA ERA SEM
EIRA NEM BEIRA EMBORA
MANIFESTA NA TESTA O
IMPOSTO UM DESGOSTO
E GRITA SEM TROTE POR
PROLE E PROGRESSO É ISTO
NESTE CENÁRIO O
PLENÁRIO PATETA NÃO PRESTA
O PROTESTO É QUE
PRESTA EXPRESSO NO TEXTO
A CEGA JUSTIÇA QUE ATIÇA
SEM PRESSA A MASSA
E O GOLAÇO É SÓ UM
LAÇO A ESCONDER O LAPSO
FALA-SE DO SUS NA SÃ
SÚCIA DOS SOLECISMOS
EUFEMISMOS ESTRATEGISTAS
NAS FALAS EXECUTIVAS
FATALISMOS CONFUSOS
NA FALÁCIA DO FULANO
TANTOS ESTRATAGEMAS
INTRAGÁVEIS NO TRAJETO
ENTÃO O TIRANO TRATANTE
TRATOU DA TARIFA
FICARAM INFELIZES
FOCARAM FEROZES NA FIFA
RECUO CAUTELOSO NO
TRÂNSITO POLITIZADO
PROTESTO NO TEXTO OU
TEXTO NO PROTESTO
EU PROTESTO NO TEXTO
PROTESTO NO PROTESTO
NO TEXTO EU PROTESTO
PARA O TEXTO EU PRESTO
PRESTO? PROTESTO
PARA O TEXTO EU PRESTO
PRESTO? PROTESTO
Morpheus
sábado, 8 de junho de 2013
POEMA DE RETORNO (três dias sobre uma maca no politrauma)
Fui até o inferno para dar uma cusparada
na face de Lúcifer,
chutei o traseiro de Cérbero
e quando ele se virou furioso para mim
babando e rosnando com seu hálito pútrido de muitos séculos
lancei-lhe três ossos em direções opostas
e ele simplesmente não soube o que fazer
entrou em conflito;
quando retornava Caronte quis me cobrar um rim
mas eu usei as coisas que aprendi vendendo sapatos
e negociei com Caronte
Consegui voltar ao mundo dos vivos
trazendo meu rim comigo
Depois dormi e acordei muitas vezes sobre uma maca
Burocracia acaricia democracia
e há centenas e centenas de quilômetros de distancia
a guerra civil segue na Síria
Sorrateiros no sono
surgiam sonhos estranhos
pesadelos dementes de uma febre teimosa
Oh! qual Phoenix inexorável que transita
entre o mundo dos mortos e mundo dos vivos
e que tem como vias de flutuação as dores
e as fraturas
e os cortes
e os traumas
e os assassínios, a violência, o medo, a raiva, o ferimento, a ardência, o torpor
e as agressões e os acidentes
e as picadas das agulhas...
e sangue...todo o sangue necessário ao assunto
efervescência translúcida dos fatos inéditos
O médico me disse que eu havia sofrido um trauma renal nível 4
(existem 4 níveis de traumas renais)
O médico me disse que talvez fosse necessário
extrair o rim
e eu imediatamente me lembrei de Tolstói
e da "Morte de Ivan Ilitch"
e me lembrei também que uma professora havia me dito que médicos
são pessoas cultas que estudam muito
Citei Tolstói ao médico e ele me disse: o que?
Burocracia acaricia democracia
E segue na Síria a guerra civil
Os estádios da copa já estavam todos prontos
e eu usava uma sonda e tinha que carregar uma bolsa
de urina
para onde quer que eu fosse,
mas passava a maior parte do tempo deitado
cochilando entre a saudade das minhas meninas
e os gemidos dos pacientes
quebrados,
queimados,
agredidos,
feridos,
moribundos,
quase esquecidos, quase...
Ah! a periclitância da vida!
ou...como já disse Guimarães Rosa:
esse negócio de viver é muito perigoso
Ah! a perecibilidade da presença!
profligando a soberba e a vaidade
concitando à humildade e a resignação
vaguei por alguns momentos
pelos corredores
como um fantasma em desalento contínuo
Burocracia acaricia democracia
E segue na Síria a guerra civil
O sofrimento é uma forma pragmática de aprendizado
que, ás vezes vem gratuitamente,
assim como, gratuitamente,
me veio uma enfermeira num dia daqueles
me mandou tirar o pinto para fora das calças
injetou um líquido no canal da sonda
e me libertou finalmente
Depois de alguns dias
eu estava voltando para casa
depois de alguns anos
eu ia poder curtir o inverno
no aconchego do lar
Morpheus
domingo, 21 de abril de 2013
PESSOAS & PESSOAS
Algumas pessoas
pensam ser mais importantes
do que realmente são
Outras, no entanto,
costumam ter mais importancia
do que, na realidade, pensam ter
obstante; estas são as que menos se importam
com importancias
ou com se importar mais ou menos...
Quem se importa?
Eu não me importo,
isso importa?
As pessoas são diferentes
isto é certo
e por serem diferentes é que são iguais
nas suas dessemelhanças é que equivalem-se
Morpheus
quarta-feira, 10 de abril de 2013
REFLECTERE
Somente sou DEUS
enquanto estou bêbado
Depois retorno a MISERÁVEL CONDIÇÃO HUMANA
que é estar de ressaca
e...como um rato
eu ressuscito entre os papelões e as cobertas e outra coisa qualquer que esteja
ao redor ou enrolada ao meu corpo como as pernas da minha mulher
Mas quem pode compreender as razões e os motivos de Deus?
Somente um louco pode pensar que é Deus
ou somente um bêbado pode pensar que é louco
não importa
nada importa
ou quase nada importa
é preciso apenas continuar vivendo e seguindo em frente
até o dia da morte
seguindo mais ou menos bem
ganhando o suficiente (é preciso muito dinheiro?)
As pessoas mais interessantes que existem não sabem o que fazer da vida
Eu bebo,
me atrevo a escrever poesia
eu devo
assim como qualquer um que vive no meio desta porcaria
Morpheus
sábado, 30 de março de 2013
SUSPIROS NOTURNOS
Junho de 1999
Acordei
assustado, parecia que tinha ouvido algum ruído estranho lá fora. Tinha finalmente conseguido cochilar um pouco
depois de nem sei quanto tempo tentando apenas dormir um pouco. Fazia frio.
Levantei rapidamente da cama. Fui
até cozinha, parei, olhei ao redor toda a escuridão do cômodo sem nem saber ao
certo por que é que eu estava fazendo aquilo.
Minhas veias estavam pulsantes e quentes, eu não iria suportar mais uma
noite. Suportaria?
Aproximei-me
da pia para pegar um copo d’água e quando olhei pela janela dois olhos amarelos
e felinos me encaravam e no mesmo instante todos os pelos do meu corpo se
arrepiaram e eu fiquei paralisado de terror.
A figura estranha do lado de fora da janela saiu andando lentamente e se
afastou na direção do quintal enquanto eu ainda tentava assimilar aquilo em
minha mente. Eram dois olhos amarelos e
uma figura escura, parecia um animal.
Chacoalhei a cabeça, neguei. Era
apenas uma alucinação. Não era
real. Mas o meu medo era. Ainda era.
Voltei ao
banheiro e lavei o rosto, enfiei a cabeça embaixo da torneira. Eu me sentia agitado. Acabara de ter uma alucinação, minhas veias
estavam em brasa, sentia vontade de arrancar os cabelos, precisa de uma...
Não. Eu não precisava de nada, precisava apenas
ser forte, precisava apenas continuar sendo eu mesmo. Teria de enfrentar a noite. Lavei o rosto novamente, lavei o rosto umas
quinhentas vezes, fiquei com a cabeça debaixo da torneira até começar a tremer
de frio e me sentir um pouco mais em paz.
Depois fiquei parado em frente ao espelho nem sei quanto tempo, a água escorrendo
de meus cabelos e pingando em meu rosto macilento. Pensava em fumar um cigarro, ainda não tinha
me privado do cigarro. Mas então uma
lata de tinta vazia caia lá no quintal com seu ruído tão característico e
depois uns ruídos estranhos que eu não pude perceber direito. Seria a criatura? Bobagem, eu pensei. Mas comecei a me lembrar daquela imagem
estranha. Meu cérebro havia me pregado
uma peça. E eu precisava enfrentar isso,
precisava ir lá fora e checar o que é que estava acontecendo. Precisava enfrentar os meus medos, é isto o que
um homem sensato faz. Teria sido o
vento? Pensando bem eu não precisava
checar nada porque não havia nada lá fora.
Busquei um cigarro com toda a sutileza do mundo para não acordar ninguém
e fiquei fumando em silêncio sentado sobre o vaso. Não conseguia conter a tremedeira e por um instante
pensei que, na verdade, estava tendo uma atitude suspeita fumando sozinho no
banheiro com a porta fechada. Alguém
poderia desconfiar que eu estivesse dando
uma paulada*. Saí e fui fumar na
sala. Sentei-me no sofá, mas não
encontrava o cinzeiro. Porra! De repente fiquei muito nervoso por que eu
não achava a merda do cinzeiro e a toda hora eu tinha que me levantar e jogar
as cinzas do cigarro no lixo. O cigarro
não estava adiantando, eu não estava me sentindo mais calmo. Quando me dei conta de mim estava procurando
o cinzeiro debaixo do armário da cozinha, mas por que diabos eu estava fazendo
aquilo? Era absurdo! Ninguém guarda um cinzeiro debaixo do armário
da cozinha. Na verdade eu estava
procurando uma pedra. Sim! Eu estava procurando uma pedra, um pega**devia ter caído por ali e eu
já tinha o careta, as cinzas, tudo. A
todo o momento eu limpava a boca, eu estava suando, eu estava perdendo o
controle. Apaguei o cigarro e me sentei
no sofá escondendo o rosto entre os joelhos.
Escutei uns ruídos lá fora. Tinha
certeza que era uma alucinação, só podia ser, era uma alucinação voltando para
querer tirar a minha paz. Tentando tirar
a minha paz? Alucinações não têm vontade
própria. Talvez eu devesse tentar dormir
novamente. Mas não. Eu não ia conseguir, estava excitado demais,
estava nervoso demais, o que eu deveria fazer era distrair a minha mente. Sim!
Busquei os meus fones de ouvido, meti um Black Sabbath no último volume
e deixei o som invadir a minha mente.
Fiquei ali chacoalhando a cabeça de olhos fechados até cansar. Quando cansei, fiquei de repente como que
paralisado olhando para a porta. O som
estourando nos meus ouvidos, as guitarras fodendo com o mundo inteiro e então
de repente tive a impressão de um vulto passando pelo corredor. Foi tão assustador que caí do sofá e derrubei
o walkman nem sei onde. Me encostei na
parede, tentei respirar fundo, eu precisava de um cigarro, mas o cigarro estava
no banheiro e para chegar até o banheiro eu precisava passar pelo corredor onde
eu tinha visto aquilo. Mas o que era
aquilo? Um vulto? Minha avó dizia que algumas pessoas que têm
problemas mentais são acossadas por espíritos sem jamais se dar conta
disto. Por um instante pensei que isso ocorria comigo
e comecei a coçar a cabeça desesperadamente.
Eu tinha vontade de chorar, meus nervos estavam em frangalhos, mas eu
sabia, lá no fundo eu sabia que eu precisava ser forte. Ser racional.
Porra! Visão periférica,
porra! Caralho! Tinha ouvido falar em algum documentário
sobre isto, visão periférica. É claro,
havia sido apenas uma impressão e eu estava nervoso demais. Mas por via das dúvidas me ajoelhei bem no
meio da sala e rezei. Ser miserável eu
sou, somente recorro a Deus quando estou me cagando de medo. Mas todos os homens não são assim?
Já me sentindo
mais calmo me levantei e fui até o banheiro.
Peguei um cigarro e acendi. Só me
restavam mais dois no maço. Eu estava
parando. Eu iria parar um dia; eu iria
parar, mas agora eu precisava de um cigarro.
Precisava de mais um cigarro para enfrentar a noite, mas aquele acabou
rapidamente e quase sem perceber eu acendi mais um e continuei ali pensando em
Deus e pensando que eu poderia enfrentar a noite, aquilo tudo, eu precisava
continuar tentando. E o outro cigarro
também havia acabado. Resolvei tentar
dormir novamente. Fui para o quarto e me
deitei. Fechei os olhos. Minha mente dava voltas, estava inquieta,
minha mente sempre foi inquieta, mas agora parecia estar pior. Era a abstinência, só podia ser. Talvez eu devesse tomar um calmante. Mas não seria pior? Eu me revirava e me mexia a todo o momento
sem conseguir conciliar o sono. Virei de
barriga para cima e fiquei de olhos abertos olhando para o teto. Que Deus me ajudasse a dormir. Como é que estaria o trailer agora? Todos deveriam estar por lá, mas se eu fosse
até lá e tomasse uma cerveja apenas seria muito mais fácil voltar e dormir
depois e... Não. Eu não tomaria uma cerveja apenas, eu sei. E se eu fumasse um baseado? Eu iria me acalmar, eu sei que iria, mas não
podia, não devia, uma coisa sempre leva a outra e eu...eu estava decidido a
mudar a minha vida. Devia pensar em
outras coisas. Sentei-me na cama, encostei-me
à parede gelada.
Ouvi um ruído
no quintal. Eram passos, eu tinha
certeza, eram passos. Levantei da cama
bem devagar arrepiado de medo. Era a
criatura, só podia ser. Era o diabo
tentando me alcançar de algum jeito.
Quando me dei conta estava agachado ao lado da cama tentando escutar
alguma coisa mas não havia nada para se escutar. Não havia ninguém lá fora, era tudo coisa da
minha cabeça. Estava paranoico. Eu precisava de um cigarro. Mas só tinha mais um e se eu fumasse teria
que passar o resto da noite sem fumar.
Eu não suportaria, teria que aguentar mais um pouco. Deveria deixar aquele cigarro para
depois. Mas talvez eu ainda tivesse um
toco de baseado escondido embaixo da cama, eu sempre deixava um toco para o
caso de necessidade e este era definitivamente um caso de necessidade. Então me pus a procurar, levantei as
cobertas, levantei o colchão, procurei por tudo e não encontrei nada. Eu estava ficando nervoso, estava com aquelas
tremedeiras terríveis, eu precisava de um trago, eu precisava de alguma coisa,
meu Deus! Eu precisava de um trago. Estava arrancando os cabelos, mas eu tinha
que ser forte, a todo o momento eu tinha em mente que eu tinha que ser forte,
eu tinha que vencer o mundo, eu tinha que vencer a mim mesmo. Eu tinha que me tornar senhor da minha
vontade. E o quarto estava todo
bagunçado. Meus pés estavam
gelados. Que horas seriam? Olhar o relógio seria pior. Eu estava limpando a boca a todo momento,
estava com aquela mania novamente, era um efeito colateral eu acho. Efeito da abstinência.
Pensei em ler um livro. Me lembrei do desespero de Kerouac em Big
Sur. Fui procurar o livro na estante,
mas eu não achava. Eu não achava. Eu não achava. EU NÃO ACHAVA. ONDE É QUE ESTAVA A PORRA DO LIVRO? CARALHO!
LIVRO FILHO DA PUTA! Não estava
ali. Não estava ali. Onde eu tinha guardado? Eu tinha vendido? Tinha emprestado?
Era melhor
fumar um cigarro, eu estava muito nervoso.
Mas eu só tinha um cigarro e se eu fumasse teria que enfrentar toda a
noite sem mais nenhum cigarro. Eu
conseguiria?
Eu queria ir
até a cozinha tomar um copo d’água, mas talvez a criatura estivesse espreitando
na janela, esperando para me encarar com aqueles olhos amarelos e aquelas
elipses negras bem no centro de cada um deles.
Talvez fosse o diabo mesmo tentando me assustar. Tentando me fazer ter um ataque cardíaco para
sair me arrastando pelos pés e me levar para o inferno, mas eu não iria
deixar. Eu havia decidido mudar a minha
vida. Eu estava me afastando de algumas
pessoas. Eu iria arranjar um emprego, eu
iria começar a trabalhar, eu precisava arranjar uma namorada, eu tinha que
tentar, eu tinha que continuar tentando.
Eu não ia beber mais. Não ia
fumar mais pedra, mais nada. Eu tinha
que preencher a minha vida com deveres, eu tinha que fazer alguma coisa, eu
tinha que dormir. Mas eu não conseguia
dormir. Eu estava desconfiado que havia
alguma coisa lá fora, mas eu sabia que era tudo bobagem, no fundo eu sabia que
era tudo bobagem, eu sabia.
Mas era
difícil. Era tudo muito difícil.
Acendi meu
último cigarro. Não suportava mais. Fumei.
Fumei o mais tranquilamente que pude, mas agora eu não tinha mais
cigarros.
A noite era um
oceano. Mas durante algum tempo eu me
sentia mais calmo. E eu pensei que
talvez fosse o momento de ir até lá fora e encarar a criatura. Talvez fosse o momento de ir lá fora e olhar
para um quintal vazio, por que quando eu estava nas ruas fumando pedra eu não
tinha tanto medo assim. Por que é que eu
estava sentindo tanto medo agora? Que
paranoia era aquela? Eu nem mesmo havia
me drogado. Eu estava careta, só tinha fumado
uns cigarros, não tinha bebido nada. Era
a abstinência, eu sabia. Lá no fundo eu
sabia. Eu não era como os outros nóias*** e era isto que iria me
salvar. Eu tinha informações, eu tinha
fé em Deus, eu tinha força de vontade, eu acreditava em mim, eu sabia dos meus
propósitos todos e havia me excedido, é claro, mas tinha que ser forte agora.
Decidi dar uma
espiada no quintal, me aproximei da porta da cozinha com cautela e espiei pelo
buraco da fechadura. De repente senti
aquele calafrio no corpo todo novamente, aquele medo irracional, aquele pavor
louco! Lá estava a criatura! Sentada no muro e se balançando para lá e
para cá como se fosse uma criança brincando comigo. E ela parecia saber que eu a espreitava, mas
por que se balançava daquele jeito?
Respirei fundo, tentando me acalmar.
Olhei novamente. Parecia ser
apenas um cara agora. Um cara ali
sentado, o filho da puta! Não seria uma
criatura então? Mas é claro que não,
criaturas não existem. Era um cara
sentado no muro. De onde tinha vindo
aquele filho da puta? O que é que ele
estava fazendo sentado no muro da minha casa e se balançando para lá e para cá
como um idiota? Resolvi acender a luz do
quintal, mas hesitei no mesmo instante.
Por quê? Não sabia muito
bem. Tudo era periclitante, silencioso,
misterioso, confuso. Havia mesmo uma
pessoa ali? Não seria apenas mais uma
alucinação minha? Agachei junto da
porta. Olhei novamente pelo buraco da
fechadura e lá estava ele. Balançava o
tronco para a esquerda e para a direita, para a esquerda e para a direita...a
cabeça estava oculta nas sombras da árvore da rua, coisa estranha! Nunca tinha pensado em alguém se mexendo
daquela maneira. E se eu acendesse a luz
talvez ele fugisse correndo pela rua ou; (de repente um branco na mente,
hesitação, devaneio) ou talvez ele...talvez estivesse armado esperando para me
matar! Mas por quê? Não.
Quem é que iria querer me matar?
Talvez estivesse esperando para roubar a casa, talvez fosse isso... Olhei novamente pelo buraco da fechadura e lá
estava ele, estava parado agora.
Parecia-me muito estranho aquilo tudo e eu não sei quanto tempo fiquei
ali naquela posição observando pelo buraco da fechadura, com os pés congelando
no chão, talvez uns vinte ou trinta minutos, mas aos poucos comecei a chegar
numa conclusão; não havia ninguém ali.
Aos poucos fui percebendo que o que havia ali, na verdade era apenas uma
camiseta colocada no varal de forma a dar a impressão em minha mente doentia de
que era um cara sentado no muro! Sim! Agora eu percebia, era apenas uma camiseta. Por quanto tempo fiquei imaginando que
houvesse alguém ali? Acendi a luz e tudo
se esclareceu, era mesmo apenas uma camiseta pendurada no varal ali fora. Que coisa!
Voltei
para a sala, liguei a tv. Filmes antigos, programas religiosos, o que
fazer? Tomei um copo de leite gelado,
deitei no sofá, estava cansado e minhas mãos estavam coçando. De repente estavam coçando demais. Eu coçava, coçava e elas coçavam ainda mais,
estavam vermelhas e eu as esfregava uma na outra o tempo todo
nervosamente. Fui ao banheiro e as
enfiei debaixo da torneira. Melhorou.
Parei na
cozinha, hesitei coçando o queixo. De
repente por entre as vidraças da sala de estar os primeiros raios de sol do
novo dia começavam a surgir. Outro dia
começava e eu havia conseguido, eu havia sobrevivido mais uma noite.
Morpheus
*gíria que
designa o ato de fumar uma pedra de crack.
**termo
utilizado pelos viciados em crack para se referir aos pedaços de crack
utilizados a cada vez no cachimbo. Cada
pedaço de pedra fumado é “um pega”
***pessoas
viciadas em crack
Assinar:
Postagens (Atom)